Aspectos Desconsiderados da Doutrina de Cristo

Origem e Consequências do Pecado

As concepções em voga sobre as maneiras pelas quais o ser humano pode pecar, e as conseqüências dos seus pecados, não traduzem exatamente o fenômeno real. Em tempos passados houve até quem tentasse catalogar as diferentes variedades de pecados, chegando à curiosa cifra de 789 delitos… Esse tipo de preocupação não ajuda ninguém em coisa alguma, pois não passa de um cismar. O que é certo ou errado cada um sente nitidamente, sabe até muito bem.

Pessoas bem-intencionadas supõem que não devem pecar porque, segundo os ensinamentos de sua religião ou crença, trata-se de uma atuação errada, um ato que não é do agrado do Criador. O significado real do pecado, porém, não se restringe a esse conceito, mas vai além.

Na Bíblia, a palavra pecado aparece pela primeira vez no Gênesis, na advertência do Senhor a Caim, antes de este matar seu irmão Abel: “Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta.” (Gn4:7). Alguns pesquisadores dizem que a palavra hebraica utilizada aí para designar pecado – hatta’th – representa um ser demoníaco, e que a idéia transmitida originalmente é a da atenção de Caim voltada para essa figura, a qual espera que ele tome uma decisão: fazer o que é certo ou não, escolha essa que o livrará do pecado ou o lançará nas suas garras. Esse termo hebraico que designa pecado tem, de fato, o sentido de “errar o alvo”, o mesmo sentido do correspondente termo grego – hamartía. Existe um texto judaico, muito bem conceituado, que reproduz essa passagem do Gênesis com o detalhe bem explícito do ser demoníaco em atalaia: “Se você tem boa intenção, conduza-a para as alturas, mas se você não tem boa intenção, já de início é pecado, um demônio-de-tocaia manda para você sua luxúria.” Os outros termos hebraicos que indicam pecado são: pesa, que significa revolta consciente e é normalmente traduzido como “rebeldia”, e awon, que indica o desvio do padrão divino, geralmente vertido como “iniqüidade”.

No Gênesis, vemos que o Criador havia feito uma distinção entre a oferta de Abel e a de Caim, tendo dado valor à primeira e rejeitado a segunda: “O Senhor voltou seu olhar para Abel e sua oferta, mas de Caim e da oferenda que trouxera desviou o olhar” (Gn4:4). Isso aconteceu porque “Abel ofereceu a Deus um sacrifício bem superior ao de Caim” (Hb11:4). Já a oferenda de Caim era “uma oferta de frutos da terra” (Gn4:3), significando que se tratava de algo meramente terreno, material. Caim se irritou com a recusa do Senhor à sua oferta e decidiu matar seu irmão Abel… A insolente resposta que Caim dá ao Criador quando perguntado pelo paradeiro do irmão, não deixa dúvidas sobre sua índole: “Acaso sou eu guarda de meu irmão?” (Gn4:9). Ao contrário do irmão bom, Caim demonstrou com seu comportamento que “era do Maligno, e suas obras eram más” (1Jo3:12). Caim representa o raciocínio humano e Abel o espírito humano. Caim foi marcado com o estigma de Lúcifer em sua testa, o sinal dos condenados: “O Senhor pôs então um sinal em Caim” (Gn4:15). O profundo significado do assassinato de Abel por parte de seu irmão Caim é narrado em detalhes na obra O Livro do Juízo Final, de Roselis von Sass.

Flavio Josefo, do século I, apresentou a seguinte interpretação do comportamento de Caim, e sua posterior atuação, em sua obra Antiguidades Judaicas: “Ele, Caim, não aceitou sua punição como corretivo, mas aumentou ainda mais a sua impiedade, pois buscava somente aquilo que era para seu prazer físico, mesmo que para isso tivesse que ferir seus vizinhos. Aumentou seus bens mediante a rapina e a violência, incitou seus conhecidos a procurar prazeres e obter coisas pelo furto, e tornou-se um grande líder de homens no caminho da iniqüidade. Ele também introduziu uma mudança na maneira simples com que os homens viviam antes, tornou-se o autor de medidas e pesos. Enquanto eles não conheciam essas artes viviam de forma inocente e generosa. Caim, porém, mudou o mundo em estratagemas ardilosos.” Essa descrição dos frutos do raciocínio supercultivado não poderia ser mais eloqüente.

O drama de Caim e Abel aparece também na mitologia egípcia, naturalmente com outros personagens. Em antigos escritos vemos que Osíris, filho do deus-terra e da deusa-céu, recebeu a incumbência de governar o mundo, e o fez como um monarca benfazejo. No entanto, Set, seu irmão, afastado do poder e corroído pela inveja, começou a conspirar contra ele, acabando por matá-lo e atirar seu cadáver na água. A versão grega é um pouco diferente, tendo como ponto central a grande estatura de Osíris... Convidado para um festim em sua honra, Osíris acaba caindo ingenuamente numa armadilha preparada pelo monstro Tifon.

É fato que o pecado constitui uma atuação contrária às disposições das leis naturais, as quais trazem em si a Vontade do Criador. Em vista disso é certo, sim, dizer que se trata de uma atitude oposta ao que é desejado pelo Senhor. Contudo, Deus, o Criador de Todos os Mundos, jamais pode ser atingido de alguma maneira pela contravenção de uma criatura. Ao agir contra as disposições do Todo-Poderoso o ser humano está prejudicando em primeira linha a si mesmo, somente a si mesmo: “Quem pecar contra Mim prejudica a si mesmo” (Pv8:36), diz o Senhor. Estará gerando para si próprio, nos efeitos finais da Lei da Reciprocidade, sofrimento e dor, miséria e desgraça, coisas que não precisaria conhecer se atentasse à Vontade do Senhor. Se não o tivesse praticado, o mal não poderia ter se apoderado dele: “Não faças o mal e o mal não se apoderará de ti” (Eclo7:1); “Praticai o bem, e o mal não vos atingirá” (Tb12:7); “Não chameis sobre vós a ruína, pelas obras de vossas mãos” (Sb1:12).

Se a criatura humana se tornar nociva na Criação, pelo desrespeito contumaz às Suas leis, será simplesmente eliminada dela, assim como se limpa uma engrenagem de um grão de areia estorvante. E nenhuma das outras peças da engrenagem sentirá qualquer falta desse grão de areia.

Uma lei da Criação é como um rio que corre para o mar. Este segue seu caminho imperturbavelmente, vivificando tudo por onde passa. Se um nadador seguir a favor da correnteza chegará ao mar rapidamente e sem se cansar. Se, ao contrário, quiser nadar contra a correnteza, não atingirá seu objetivo, mas será arrastado também para o mar de qualquer forma, chegando lá completamente extenuado e talvez até morto.

É impossível ao ser humano se sobrepor às leis da Criação, porque é impossível à vontade humana prevalecer sobre a Vontade de Deus, da qual emana a Luz da Verdade. O mínimo que lhe poderá acontecer nessa sua tentativa tola será sair dela muito machucado, pois “nada podemos contra a Verdade, senão em favor da própria Verdade” (2Co13:8).

A humanidade como um todo, porém, vem tentando nadar contra as correntezas da vida já há milênios, e por isso é arrastada à força agora em sentido contrário, impetuosamente. Nesse arrastar ela vai encontrando de volta, multiplamente aumentado, tudo quanto havia gerado atrás de si: destruição, tristeza, sofrimento, miséria. Tivesse ela seguido junto com as correntezas e o mundo seria hoje um paraíso terreno, onde só habitariam alegria e felicidade, como, aliás, estava previsto inicialmente nos caminhos do desenvolvimento humano.

Por isso, já numa época remota a humanidade recebeu os Mandamentos através de Moisés. Os Dez Mandamentos foram, na realidade, conselhos dados com imenso Amor à humanidade, para que no futuro ela não precisasse conhecer novos sofrimentos em seus caminhos de evolução, ou, até mesmo, vir a ser aniquilada. (1) São dez conselhos outorgados pelo onipotente Criador às Suas criaturas… Conselhos severos, não sugestões banais! Por essa razão, os Dez Mandamentos precisam ser observados de modo absoluto pela criatura humana, todos eles.

Ninguém pode desprezar a Verdade e a Justiça divinas e permanecer impune. Conforme já constatara o salmista em seu louvor ao Senhor, os Mandamentos dados à humanidade são a própria Verdade e Justiça de Deus: “Todos os Teus Mandamentos são Verdade, todos os Teus Mandamentos são Justiça” (Sl119:151,172). Somente aquele que observa os Mandamentos, preceitos de Deus para os homens, caminha nas sendas do Amor e da Verdade: “Todas as veredas do Senhor são Amor e Verdade para quem observa Sua aliança e Seus preceitos” (Sl25:10), adquirindo com isso a verdadeira sabedoria da vida: “Tu, que desejas a sabedoria, observa os Mandamentos, e o Senhor ta concederá” (Eclo1:26). Por isso, “quem diz ‘eu conheço a Deus’ mas não observa os Seus Mandamentos é mentiroso, e a Verdade não está nele” (1Jo2:4). Jesus também avisou que somente quem observasse os Mandamentos poderia entrar na vida eterna: “Se queres entrar para a vida, observa os Mandamentos” (Mt19:17). Com isso, o Mestre reavivava a ordem dada por Moisés ao povo israelita para que pusessem em prática esses mesmos Mandamentos: “Escuta, Israel, as leis e os preceitos que eu hoje proclamo aos vossos ouvidos; aprendei-os e ponde-os em prática” (Dt5:1).

Pôr em prática os Dez Mandamentos não é algo impossível e nem mesmo difícil: “Seus Mandamentos não são penosos” (1Jo5:3). Eles são tão simples e claros, a própria clareza!... Como pode alguém, por exemplo, ainda sofismar sobre essas palavras cristalinas e deixar de cumprir o segundo Mandamento: “Não pronunciarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão, pois o Senhor não deixa impune quem pronuncia Seu nome em vão” (Dt5:11). No entanto, esse claro Mandamento do Senhor é o menos observado dos dez. Quase ninguém hoje atenta mais à santidade do nome do Senhor, louvado outrora pelo salmista: “Santo e venerável é o Seu nome” (Sl111:9); “só Seu nome é sublime” (Sl148:13); “como é glorioso Teu nome em toda a Terra!” (Sl8:1). São milhares as transgressões desse segundo Mandamento, transgressões que o Senhor não deixa impune!… Isso, apesar de outras tantas advertências correlatas, também muito claras e incisivas: “Não te acostumes a pronunciar o Nome do Santo! (…) Quem pronuncia o Nome em qualquer circunstância não será jamais isento do pecado” (Eclo23:9,10).

Vê-se que falta por toda parte a compreensão acertada da enorme abrangência e seriedade dos Dez Mandamentos. O quinto Mandamento, por exemplo, diz: “Não matarás”. Em hebraico, o verbo usado é ratsáh, que significa literalmente “quebrar”, “reduzir a pedaços”. Essa expressão não pode ser encarada exclusivamente como “tirar a vida de um corpo de matéria grosseira”, mas vai muito além disso. Significa, por exemplo, não reduzir moralmente alguém a pedaços, não quebrar uma amizade verdadeira ou a confiança que alguém nos deposita. Qualquer ato nesse sentido constitui assassinato no verdadeiro sentido, e por conseguinte uma transgressão ao quinto Mandamento! Se o Mandamento aludisse unicamente à proibição contra assassinato físico, o próprio Moisés já o teria infringido, pois o relato bíblico informa que ele liquidou um egípcio que maltratava um membro do seu povo (cf. Ex2:12).

Assim é também com os demais Mandamentos da Lei de Deus. Imensamente abrangentes e categóricos para o espírito humano. Contudo, o primeiro dos Dez Mandamentos é de tal modo incisivo, de tal modo decisivo para a existência da criatura humana, que Cristo denominou-o de “o maior dos Mandamentos” diante dos fariseus, indicando ser ele a lei suprema:

“Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então se reuniram, e um deles, um doutor da lei, perguntou-lhe, para experimentá-lo: ‘Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’ Ele respondeu: ‘Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento! Esse é o maior e primeiro mandamento.”

(Mt22:34-38)

O primeiro Mandamento age como um pendor ao contrário no ser humano, contanto que ele o vivifique dentro de si. É, na verdade, um “ascensor”, que segura a criatura em todas as dificuldades e a puxa para cima, impedindo-a de cair espiritualmente. O profeta Amós transmitiu o mesmo conceito com essa exortação da parte do Senhor: “Assim diz o Senhor Deus: Procurai por Mim e havereis de viver” (Am5:4). Quem quiser escolher a vida eterna tem de colocar o Criador acima de tudo, apegando-se a Ele como a um pendor, amando-O de todo coração e obedecendo à Sua voz, claramente audível na linguagem expressa na Criação: “Escolhe, pois, a vida, para que vivas, amando ao Senhor teu Deus, obedecendo à Sua voz e apegando-te a Ele”! (Dt30:19). Somente os que cumprem dessa forma o primeiro Mandamento permanecerão vivos espiritualmente: “Quanto a vós, permanecestes apegados a Yahweh, vosso Deus, e hoje estais todos vivos” (Dt4:4).

Não é difícil compreender que a deliberada permanência da atuação errada após o recebimento do Decálogo, e posteriormente da própria Mensagem de Jesus, constitua para o pecador uma circunstância agravante, pois desse modo ele continua a pecar conscientemente, “não tendo agora desculpa do seu pecado” (Jo15:22). Para estes, realmente, “melhor lhes fora não terem conhecido o caminho da justiça do que, após tê-lo conhecido, desviarem-se do santo Mandamento que lhes foi confiado” (2Pe2:21). Desse modo só lhes pode restar mesmo “certa expectação horrível de juízo e fogo vingador, por viver deliberadamente em pecado depois de ter recebido o pleno conhecimento da Verdade” (Hb10:27,26). Podem contar a partir daí com ira e indignação sobre si: “Para aqueles que por rebeldia desobedecem à Verdade e se submetem à iniqüidade, estão reservadas a ira e a indignação” (Rm2:8).

Do mesmo modo, quem ainda é capaz de pecar após ter ouvido e assimilado a Palavra de Jesus, isto é, aquele que depois de “ter provado a boa Palavra de Deus ainda é capaz de cair, crucifica para si mesmo o Filho de Deus e o expõe à ignomínia” (Hb6:5-6). “Assim, aquele que julga estar firme, cuide para que não caia!” (1Co10:12). Crucificar para si mesmo o Filho de Deus outra coisa não é senão matar a Palavra da Vida dentro de si, assassiná-la mais uma vez, ao invés de conservar “Cristo habitando no coração” (cf. Ef3:17). Com tal proceder, semelhante indivíduo abre mão, voluntariamente, da sua única possibilidade de salvação. É o mesmo que calcar sob os pés o Filho de Deus, o que trará na reciprocidade o castigo correspondente: “Podeis, então, imaginar que castigo mais severo ainda merecerá aquele que calcou aos pés o Filho de Deus” (Hb10:29). Esse tal torna-se então duplamente culpado, porque “a quem muito foi dado, muito será exigido” (Lc12:48). Ele passa a ser como a terra ruim, que apesar de ter recebido a mesma chuva abundante que caiu sobre a terra boa, só consegue por fim produzir espinhos e ervas daninhas: “Quando uma terra embebida de chuva abundante produz plantas úteis para quem as cultiva, essa terra tem a bênção de Deus. Mas se ela produz espinhos e ervas daninhas, não tem valor algum e está a um passo da maldição: acabará sendo queimada” (Hb6:7,8).

Que o efeito no retorno da reciprocidade será especialmente severo para com aquele que pecou conscientemente, em contraste com alguém que tenha praticado algum ato irrefletido, fica claro na passagem a seguir:

“Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade, será punido com muitos açoites. Aquele, porém, que não soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas de reprovação, levará poucos açoites.”

(Lc12:47,48)

A título de ilustração, mencione-se que os preceitos contidos no Antigo Testamento para expiação dos pecados referiam-se tão-somente aos cometidos por descuido, inadvertência ou ignorância (cf. Lv4:2,13,22,27), isto é, a atos irrefletidos. Já quem pecava deliberadamente – em hebraico “pecar com a mão levantada” – seria simplesmente eliminado do povo do Senhor (cf. Nm15:30).

De qualquer maneira, também não é preciso que uma ação errada se evidencie visivelmente na matéria grosseira para ser caracterizada como pecado. A intenção basta. Quando, por exemplo, uma pessoa sente intuitivamente inveja, ódio ou cobiça, ela já inseriu com isso algo ruim no mundo, mesmo que não lhe seja visível, e desse modo ela efetivamente “já deu à luz o pecado” (Tg1:15). Esse algo ruim é uma configuração real, moldada numa matéria mais fina do que a matéria grosseira a nós visível, a qual traduz exatamente a intenção do gerador. Assim, o ser humano já está pecando ao dar ensejo a qualquer intuição má ou mesmo a pensamentos maus correspondentes. Com isso ele gera configurações feias, horripilantes, cuja única finalidade é trazer danos lá onde puderem se ancorar, por efeito da Lei de Atração da Igual Espécie.

O pecado é uma ação errada levada a efeito pelo espírito humano. Nada a ver com ninharias puramente terrenas, como prescrições alimentares, tipos de corte de cabelo, uso de adornos, etc. A não observância dessas coisas instituídas pelo raciocínio não é nenhum pecado. Tão-somente o desejo errado do espírito, que também pode dar origem a maus pensamentos e até ações más na matéria grosseira (com a respectiva reciprocidade ruim), é determinante para a geração de um carma negativo, segundo as leis divinas na Criação. Isso sim é pecado, o qual trará o retorno ao gerador infalivelmente, obrigando-o a arcar com as conseqüências de sua vontade errada, pouco importando a época ou o local em que se encontrar por ocasião da efetivação.

As configurações de intuições e de pensamentos permanecem ligadas ao gerador, mesmo depois de se terem desprendido dele. E também por efeito dessa mesma Lei de Atração da Igual Espécie atrairão formas análogas a elas, reforçando ainda mais a espécie má original. Contudo, como permanecem ligadas ao gerador, acabam retornando a ele após tempo maior ou menor, muito mais reforçadas também, trazendo-lhe então os efeitos retroativos correspondentes, em obediência à Lei da Reciprocidade. Esse fenômeno, tão incisivo para a existência inteira do ser humano, foi abordado por Jesus na passagem abaixo:

“Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos, procurando repouso, e não o achando diz: Voltarei para minha casa donde saí. E, tendo voltado, a encontra varrida e ornamentada. Então vai e leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele, e entrando habitam ali, e o último estado daquele homem se torna pior do que o primeiro.”

(Lc11:24-26)

“Espírito imundo” deve ser entendido aqui como algo que tem a aparência de uma forma humana, visto ter se originado e saído do próprio ser humano, que é um ente espiritual. Se é imundo significa que se trata de uma configuração gerada por uma vontade intuitiva má. Configurações de intuições más e de pensamentos maus possuem formas horrendas – não obstante a aparência humana – visto terem sido originadas do mal.

A beleza (não a física) e a feiúra constituem, aliás, indicadores precisos e imediatos daquilo que se move direito ou errado na Criação. Certamente não é nenhum acaso o fato de a palavra hebraica ’ra significar mal e também feio… e que em grego a palavra que designa belo também ter o sentido de bom. Podemos obter uma noção da velocidade da decadência geral se compararmos algum tema da época atual com outrora, verificando até que grau o conceito de beleza foi torcido pela raça humana.

Tomemos, por exemplo, a arte. Compare-se as pinturas dos grandes mestres da Renascença com a chamada arte moderna. É de cair pictoricamente o queixo. Nas exposições desse tipo de arte muitos se quedam profundamente compenetrados à frente de quadros que exibem apenas rabiscos e manchas coloridas, tentando assimilar a “mensagem” que o pintor quis supostamente transmitir, ou, o que é mais comum, dando-se ares de entendidos no assunto e emitindo opiniões várias. No entanto, tais pinturas não significam outra coisa senão borrões sem sentido. Houve, inclusive, uma exposição em que o quadro vencedor foi pintado por um macaco; numa outra, por uma criancinha de quatro anos que apenas se divertia com as tintas que a mãe lhe havia dado para brincar; em outra exposição, um quadro de arte moderna permaneceu por engano vários dias exposto de cabeça para baixo, sob os olhares e comentários admirados dos apreciadores… E não se diga que a arte antiga e a atual são estilos distintos, e que por isso não podem ser cotejadas. Beleza é beleza e feiúra é feiúra. Ponto. Não vamos aqui nem mencionar a chamada arte contemporânea ou pós-moderna, pois que ainda não existem adjetivos para descrever um tal horror. E essa “arte” pós-moderna seria pré o quê?... Dá medo só de pensar…

Na música não é diferente. Os séculos XVIII e XIX viram surgir grandes compositores, autores de obras maravilhosas, soberbas, imorredouras. Até mesmo a época medieval, tão turbulenta, foi berço de músicas ricas e melodiosas, produtos admiráveis da pura vontade intuitiva de verdadeiros compositores, e por isso mesmo também imperecíveis. Mas, à medida que nos aproximamos do século XX e adentramos nele, a boa música vai escasseando mais e mais… E o que sobra também se deteriora cada vez mais, até desembocar no pesadelo sonoro que os jovens de hoje ainda se atrevem a chamar de música. Música verdadeira, perene, não pode surgir na época atual, quando a arte musical se encontra degradada a ofício, subjugada que está pelo domínio irrestrito do raciocínio. O mesmo se pode dizer em relação à arte da escultura.

E a indumentária! Compare-se as roupas e os “adornos” dos nossos jovens com as vestimentas dos moços e moças do século XIX ou início do século XX. Não há comparação possível.

Assim se apresenta a humanidade agora, na última fase do Juízo Final. Todo o falso atuar humano cresce agora cada vez mais sob a irradiação do Juízo, exibindo-se sob as formas mais extravagantes, mesclando-se ainda com acontecimentos terríveis, retornos da própria má vontade humana acumulada. O resultado de tudo isso é um caos enorme, imerso na imundície, uma feiúra ampla, geral e irrestrita, sem paralelo na história da humanidade.

Já a beleza, bem ao contrário, é o efeito natural e automático de todo e qualquer fenômeno que se processa em conformidade com as leis da Criação. Tudo o que age e se molda de acordo com essas leis será belo. Sempre será. É impossível não sê-lo. Mesmo aqui na Terra podemos constatar isso, ainda que em escala reduzida, observando a beleza sempre renovada da natureza. Como ela, a natureza, se desenvolve incondicionalmente segundo essas leis, tem necessariamente de ser bela. É por isso que ninguém nunca viu, nem nunca verá, uma flor feia… A natureza só se degrada de algum modo quando o ser humano põe sobre ela a mão, provocando desequilíbrios em múltiplas formas.

Também o ser humano poderia viver rodeado de beleza, se apenas quisesse realmente. Bastaria que se esforçasse em viver de acordo com as poucas e simples leis naturais, procurando direcionar seus pensamentos, palavras e ações sempre no sentido construtivo, no sentido do bem. Se a sua “perseverança nisso tivesse tido ação completa, ele se tornaria perfeito e íntegro, em nada deficiente” (Tg1:4). Sua vida tornar-se-ia novamente bela, assim como ele próprio, como resultado da atuação dessas mesmas leis.

Por isso, o ser humano de espírito vivo tem de cobrar ânimo e agir. Agir agora, no presente! Ele mesmo tem de arregimentar todas as suas forças unicamente no sentido do bem, sem descanso, se quiser de fato construir um belo futuro para si. É ele mesmo quem precisa colocar mãos à obra, com infatigável afinco! Cabe a ele, exclusivamente, transformar de modo radical sua vontade interior, o que naturalmente acabará se exteriorizando também em seus pensamentos, palavras e ações. E o pensamento purificado, a palavra verdadeira e a ação correta constituem justamente o material de construção com que ele molda, de modo inteiramente automático, um belo e radiante futuro para si mesmo. Tanto no Aquém como no Além. De modo inteiramente automático. Sem estafas intelectuais, sem algemas dogmáticas, sem malabarismos místico-ocultistas.

Agindo dessa forma ele terá de formar um belo futuro para si, por nem ser possível diferentemente segundo a lei natural de Causa e Efeito, ou Lei da Reciprocidade. Não é nada que a boa vontade e a perseverança não possam conseguir. As pedras que aqui e acolá surgem nessa sua empreitada, como se viessem do nada, e que eventualmente ainda podem fazê-lo tropeçar e se machucar, só lhe são úteis na realidade. Elas também foram formadas, lapidadas e colocadas no tapete do seu destino por ele mesmo, em decorrência de sua sintonização errada de outrora. Não devem incutir-lhe medo ou desânimo, ao contrário, devem servir para que reconheça os erros que ainda lhe pendem e retemperar sua tenacidade em prosseguir para cima, colhendo sempre novos reconhecimentos espirituais. Deve ter sempre em mente que “Deus não nos deu um espírito de medo, mas um espírito de força, de amor e de sobriedade” (2Tm1:7). Um provérbio oriental diz: “Quando se busca o cume da montanha, não se dá importância às pedras do caminho.” As próprias pedras tornar-se-ão paulatinamente menores e mais raras à medida que se sobe, até que um dia também elas terão desaparecido por completo. Desse modo, a escalada lhe será facilitada a cada dia, na medida exata do seu esforço em ascender. E, ao atingir determinada altura, poderá divisar então nitidamente o belo futuro acalentado, o porvir que ele mesmo forjou para si, que ele mesmo conquistou.

Uma pessoa que se esforça desse modo para as alturas luminosas só poderá reagir com alegria ante cada anunciação do Alto, e não com medo. Medo é sinal de falta de movimentação espiritual, e agora, no Juízo, indica algo mais grave: falta de confiança na atuação das leis eternas, e por conseguinte falta de confiança na própria Onipotência e Justiça do Todo-Poderoso. Já o tema Juízo Final, por si só, é capaz de despertar o medo em muitos, como aconteceu outrora com o governador Félix ao ouvir Paulo: “Dissertando ele acerca da Justiça, do domínio próprio e do Juízo vindouro, ficou Félix amedrontado” (At24:25).

Desde o grande falhar, o medo sempre foi companheiro constante da raça humana. Até mesmos os singelos pastores que tomavam conta do rebanho na noite de Natal, “ficaram com muito medo quando um anjo do Senhor lhe apareceu” (cf. Lc2:9) para lhes anunciar o sagrado nascimento de Jesus. Por essa razão, o anunciador lhes falou antes de mais nada, tranqüilizando-os: “Não tenhais medo!” (Lc2:10). Por isso também sempre encontraremos essas palavras quando um anunciador das alturas se dirige a um ser humano. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Zacarias ao ver um anjo do Senhor postado à direita do altar. O sacerdote ficou perturbado com a visão, e imediatamente o anjo disse: “Não tenhais medo, Zacarias, porque o Senhor ouviu teu pedido” (Lc1:13).

O único antídoto para o medo em nossa época, de cuja especial intensidade discorreremos mais à frente, é, portanto, manter contínua movimentação na escalada espiritual. Os que pautam suas vidas dessa forma sentem alegria permanente e não medo, e com isso tornam belos seu ambiente bem como a si próprios. São aquelas pessoas que parecem clarear o recinto só com a sua presença, e que sempre atraem magneticamente outras pessoas também possuidoras de qualidades boas. Homens que inspiram confiança e mulheres que irradiam graça. Criaturas belas no mais verdadeiro sentido, pouco importando se jovens ou velhas.

Sobre isso, já bem dizia o grande Pelágio no século IV: “Cada cristão tem de ser o mestre artesão da sua própria alma”. É nesse sentido que se pode dizer que o espírito molda o corpo, pois a vontade espiritual – o coração do homem – traz em si a força para moldar a alma de matéria fina: “É o coração do homem que modela o seu rosto, quer para o bem, quer para o mal” (Eclo13:31). Se o coração estiver voltado só para o bem, a alma se tornará belíssima.

Mas essas almas belas, infelizmente, são a exceção, e cada vez mais rara. A maior parte da humanidade é constituída de almas feias, horríveis mesmo, deformadas pelo egoísmo, mentira, inveja e ódio. São seres repulsivos, que conspurcam o ambiente com suas conformações medonhas de matéria fina, geradas por sua vontade má e seus pensamentos pestíferos. São, sim, criaturas horrorosas, repugnantes, mesmo que tenham uma boa conversa, mesmo que seus reflexos no espelho possam ser chamados de agradáveis. Como diz a voz do povo: por fora bela viola, por dentro pão bolorento…

É justamente para as emboloradas almas humanas dessa espécie, particularmente para as mulheres tão superficiais, que se diz: “anel de ouro em focinho de porco, tal é a mulher formosa, mas insensata” (Pv11:22). Infelizmente, quem vê a despudorada mulher da época atual, também tem de concordar que essa sentença do livro apócrifo Testamento dos Doze Patriarcas, escrito em fins do século II a.C., continua inteiramente válida para os dias de hoje: “Se quiserdes permanecer puros em vossos pensamentos, excluí de vossa mente as mulheres!”

Em linhas gerais, a mulher se degradou de uma tal maneira, que ela nem pode mais reconhecer. Tanto, que o homem deixou de reconhecer nela a portadora da elevada missão da feminilidade, acabando por desprezá-la de modo totalmente inconsciente. Todo lugar em que a mulher se encontra rebaixada, oprimida de inúmeras maneiras pela masculinidade, é indicativo de um solo espiritual doentio, que terá de ser purificado de um jeito ou de outro. Esse processo de degeneração contínua da feminilidade vem já de milênios, e por isso pode ser reconhecido em vários textos bíblicos que, de uma maneira ou de outra, discriminam a mulher com mal disfarçada misoginia.

Como a humanidade se encontra afastada da Verdade há sete mil anos, e os textos bíblicos mais antigos têm muito menos de 4 mil anos de idade, é natural que as deturpações de Baal tenham-se imiscuído em muitos temas da Bíblia, principalmente no tocante ao papel da mulher, que sempre foi o primeiro alvo da obra destruidora de Lúcifer. Por exemplo, a palavra hebraica normalmente traduzida como marido nos textos do Antigo Testamento possui o significado original de “dominar, governar”, e seria mais honestamente traduzida como “amo, senhor”. O respeito e a atenção que Jesus dedicou às mulheres de seu tempo foi algo que causou uma enorme surpresa, quando não comoção. Mas foi só ele partir para que os antigos costumes retornassem com toda a força entre o povo, como fica evidente nessas frases soltas de Paulo, que não era nenhum carrasco: “As mulheres estejam caladas nas assembléias, porque não lhes é permitido tomar a palavra e, como diz também a lei, devem ser submissas. Se, porém, quiserem aprender alguma coisa, perguntem em casa aos maridos” (1Co14:34,35); “A mulher receba a instrução em silêncio, com toda submissão. Não permito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem, mas que se mantenha em silêncio” (1Tm2:11,12).

Mal sabia o apóstolo que a mulher exerce, sim, amplo domínio sobre o homem, muito maior do que se imagina, sendo esse o motivo de Lúcifer tê-la escolhido como seu alvo principal, pois ele sabia muito bem que se fizesse cair a mulher, o homem a seguiria infalivelmente para baixo. A queda no pecado descrita no Gênesis mostra exatamente essa situação. O poder da mulher é exercido sobretudo no lar, quando, no bom sentido, ela se torna realmente uma rainha, de esplendorosa beleza, derramando bênçãos sobre a família e a Criação inteira, com sua atuação silenciosa: “Como o Sol quando se ergue no alto do céu, assim é a beleza de uma boa esposa na ordenação de sua casa” (Eclo26:21).

Uma lenda judaica muito antiga, mostra que esse saber sobreviveu em certa medida, mesmo sob o terrível culto de Baal. No relato, um homem e uma mulher piedosa se casam, e como não têm filhos concordam em se separar. Cada qual encontra um novo companheiro. Diz a estória que o marido piedoso se casou com uma mulher ímpia e ela o tornou ímpio, e que a mulher piedosa se casou com um homem ímpio e fez dele um exemplo de retidão. Essa singela estória sintetiza muito bem o alcance do poder e da força da mulher dentro do lar.

Contudo, vários outros exemplos mostram a influência nefasta da doutrina de Baal para a degradação da feminilidade na Antiguidade. O muito antigo livro de Levítico, escrito provavelmente por volta do século V a.C., estipulava que se a mulher desse à luz um filho seria considerada impura por uma semana, mas no caso de uma filha a impureza se estenderia por duas semanas… A mulher não poderia participar de cerimônias religiosas por 33 dias se tivesse dado à luz um filho, e 66 dias se tivesse tido uma menina (cf. Lv12:1-5). Quando o Levítico faz uma avaliação monetária das pessoas segundo a idade, a mulher aparece sempre com a metade do valor de um homem (cf. Lv27:1-7). As mulheres judias ficavam de pé enquanto os homens comiam, e tinham de manter certa distância dos seus senhores nas ruas e nos átrios do Templo, onde podiam ocupar apenas uma área segregada, denominada “pátio das mulheres”. Seu testemunho não era válido num tribunal e os rabinos consideravam um pecado instruir mulheres na religião. Uma mulher não podia, em hipótese alguma, tornar-se sacerdotisa, porque seu ciclo mensal a tornava quase que permanentemente impura. Era crença disseminada que o espírito de um homem ímpio teria, como castigo, de se encarnar depois como mulher, ao passo que se uma mulher se comportasse de maneira justa, tornar-se-ia homem numa outra vida… Na Roma antiga e também na Grécia, uma mulher só podia realizar algum negócio se tivesse um fiador masculino. Em Atenas, havia normas para o deslocamento das mulheres pela cidade. A mulher grega só começava a contar sua idade a partir do dia em que se casava, significando que o casamento marcava o começo de sua vida real.

Foi a própria mulher que permitiu ser assim discriminada, ao aceitar voluntariamente os engodos de Lúcifer e repudiar sua sublime missão. Com isso, aos olhos da Luz ela perdeu seu encanto, e se tornou feia, horrivelmente feia.

No futuro, quando o conceito de beleza tiver sido endireitado à força, assim como tudo o mais que a humanidade torceu em sua cegueira espiritual, a Terra voltará a ser habitada unicamente por seres humanos belos, na mais completa acepção deste termo. E, em primeira linha, conduzindo tudo no novo tempo… a mulher!

Não a mulher de hoje, a “mulher estulta que nada sabe” (Pv9:13), da qual “sai malícia como traça das vestes” (Eclo42:13), a “estranha que fala com suavidade mas que se esqueceu da aliança do seu Deus” (Pv2:16,17), que “não segue o caminho da vida e seus trilhos se extraviam sem que perceba” (Pv5:6), “cuja casa pende para a morte e para o abismo os seus caminhos” (Pv2:18), onde “todos os que a freqüentam não retornam, e não encontram os caminhos da vida” (Pv2:19), porque “suas escadas levam para os átrios da morte” (Pv7:27). Mas sim a nova mulher, aquela que se tornou “muito mais preciosa do que as jóias” (Pv31:10), “vestida de força e dignidade” (Pv31:25), cuja “graça vale mais que o ouro” (Eclo7:19), que “abre a boca com sabedoria, e sua língua ensina com bondade” (Pv31:26); a mulher espiritualizada, guardiã do sagrado anseio pela Luz nas criaturas, que com sua invencível pureza rediviva “esmaga a cabeça da serpente” (Gn3:15), a serpente do mal e do pecado, a qual nunca mais poderá seduzir ninguém. A vida inteira então voltará a ser bela, será tão maravilhosa e linda como já fora no início dos tempos. E como deveria ter permanecido.

Mas voltemos, depois dessa longa digressão, ao espírito imundo que se desprendeu do ser humano, como decorrência de um pecado. Essa conformação má “anda por lugares áridos”, ou seja, é arrastada para regiões que, assim como ela mesma, são feias e lúgubres. É levada incondicionalmente para essas regiões, de acordo com a atração da igual espécie, e “não encontra repouso”, porque tudo o que entra na engrenagem da Criação é mantido em movimento permanente. Continuamente impulsionada, essa configuração de espécie ruim acaba “voltando para casa”, isto é, para o ponto de partida, o ser humano que a gerou, já que sempre permaneceu ligada a ele.

O espírito imundo – a configuração intuitiva má – volta trazendo “outros sete espíritos piores do que ele”. Essa imagem mostra que a configuração retorna ao gerador reforçada em sua espécie má, pela atração da espécie igual. E, com isso, o estado daquela pessoa se torna evidentemente “pior do que antes”, quando havia gerado a configuração inicial, pois recebe em si, multiplamente aumentado, o efeito retroativo de sua vontade má original.

Depois de ter gerado a configuração inicial, a pessoa poderá até se arrepender e não dar ensejo à formação de outras de igual espécie má, ou seja, pode cuidar de manter limpo o seu íntimo, deixando a “casa varrida e ornamentada”. Contudo, aquela primeira configuração má só será extinta quando retornar a ela, robustecida em sua espécie básica, evidenciando-se através de algum efeito recíproco correspondente a esse carma ruim, com o que somente então a culpa será efetivamente remida. O retorno da configuração má, que se evidencia por um mau efeito na reciprocidade, em grau maior ou menor segundo o âmbito da pessoa por ocasião desse retorno, traz o perdão do pecado cometido outrora, quando o ser humano em questão reconhece como justo o que lhe atinge e conseqüentemente modifica sua sintonia interior naquilo que ainda é necessário.

Que a simples intenção má já é mesmo um pecado, através do fenômeno acima descrito, fica patente nessa advertência de Jesus:

“Ouvistes o que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: Qualquer um que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela.”

(Mt5:27,28)

Ou seja: com a vontade intuitiva da cobiça o pecado já foi cometido, portanto também já pôs em marcha as engrenagens das leis naturais, as quais cuidarão de trazer de volta ao gerador o respectivo efeito retroativo dessa sua vontade má.

Essa contingência mostra como é inócuo o atual esforço exacerbado de se vivificar o lema: “tudo é puro para os que são puros” (Tt1:15). Primeiro, porque uma pessoa exteriormente considerada pura pelos seus semelhantes pode muito bem ter um coração impuro, emitindo pensamentos imundos, como acontecia com os fariseus. Apenas de uma pessoa verdadeira e intimamente pura, se poderia dizer que “tudo quanto dela emana é puro”, mas não que qualquer coisa exterior seja por ela purificada de alguma forma. Em segundo lugar, porque essa sentença da Epístola de Paulo a Tito, caso seja mesmo do apóstolo, deve ser entendida no contexto da época, em que havia uma grande celeuma entre os doutrinadores sobre quais alimentos eram puros e quais não eram, segundo os preceitos judaicos. O livro de Atos conta que o apóstolo Pedro até necessitou de uma visão para lhe mostrar que determinados alimentos, ao contrário do que prescreviam as leis do Judaísmo, não eram impuros (cf. At10:9-16). Não se tratava aí da pureza íntima, do coração, pois essa Paulo defendia enfaticamente, como atesta essa exortação a Timóteo: “Conserva-te puro!” (1Tm5:22).

Essa pureza verdadeira nada tem a ver, portanto, com divergências ritualísticas entre o Cristianismo incipiente e o Judaísmo tradicional, que realmente se evidenciaram logo, já no início do primeiro século da era cristã. Em sua biografia do imperador Claudius, que comandou o Império Romano entre os anos 41 e 54 d.C., o historiador latino Caius Suetonius (69? – 126) narra que em 49 d.C. ele expulsou os judeus de Roma (cf. At18:2) porque estes “viviam em contínuas desavenças por causa de um certo ‘Cresto’ [Cristo]”.

Más intuições e maus pensamentos já formam, portanto, um carma ruim, que terá de se efetivar mais cedo ou mais tarde sobre o gerador. O ser humano tem, sim, a capacidade de atenuar um mau efeito retroativo prestes a se abater sobre ele, caso mude sua disposição interior, nunca porém de eliminá-lo antes da sua efetivação. Está em suas mãos estipular o montante a ser pago, mas não extinguir a dívida a ser saldada. Jesus esclareceu esta contingência de uma forma bastante simples e clara:

“Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali enquanto não pagares até o último centavo.”

(Mt5:25,26)

Pagar até o último centavo… Pagar até o último centavo! Como, depois dessas palavras, pode um cristão supor que uma outra pessoa, talvez até muito mais sobrecarregada de culpa do que ele, tenha o poder de lhe perdoar os pecados?… “Cada qual tem de carregar seu próprio fardo” (Gl6:5), avisa Paulo. Só sairemos da prisão para a liberdade após pagar o último centavo, só deixaremos a matéria rumo ao reino espiritual depois de resgatar dentro dela todas as nossas culpas. Progredimos quando reconhecemos a causa do nosso pesado fardo de sofrimento, mas nenhum centavo (2) nos poderá ser perdoado arbitrariamente.

Quero novamente citar aqui um trecho da Mensagem do Graal de Abdruschin, dissertação “Despertai!”:

“É tolice falar de golpes do destino ou provações. Cada luta e cada sofrimento é progresso. Com isso o ser humano terá ensejo de anular sombras de culpas anteriores, pois nenhum centavo pode ser perdoado para cada um, porque o circular de leis eternas no Universo é também aqui inexorável, leis nas quais se revela a vontade criadora do Pai, que assim nos perdoa e desfaz todas as trevas.”

O perdão advém pelo reconhecimento do erro, quando do retorno da reciprocidade. Através de Suas Leis auto-atuantes na Criação, “o Senhor, Deus misericordioso e clemente, conserva a misericórdia por mil gerações e perdoa culpas, rebeldias e pecados, mas não deixa nada impune” (Ex34:6,7). Ele, pois, não deixa nada impune! Nada!

A idéia de um perdão fácil e imerecido dos pecados só pôde medrar mais uma vez da nefasta, da funesta ilusão da “salvação pela graça”. Tal engodo concede aos ludibriados a falsa segurança de já estarem salvos, apenas porque crêem no Senhor Jesus e no sacrifício da cruz. Na verdade, esse tipo de Cristianismo não lhes concede a libertação do pecado como imaginam, mas sim a liberdade de pecar. Sabem que não devem pecar, mas, como já estão salvos, no caso de caírem de novo em alguma tentação e pecarem… paciência! Basta que se penitenciem de algum modo para que no mesmo instante seu hodômetro de vida pecaminosa retorne novamente a zero, e assim, felizes da vida, mais uma vez… vida nova! Até o próximo pecado… Falácia nefanda! Isso é que é! Todos estes que se julgam purificados pelo sangue na cruz terão de prestar contas um dia por tamanha arrogância e insensatez. Sua fé cega nos textos bíblicos e nas interpretações torcidas das palavras de Jesus de nada lhes valerão naquela hora.

Quantos desses fiéis se têm na conta de muito vigilantes, prontos a refutar qualquer um que tente desviá-los da Palavra da Bíblia, sem perceberem que já estão todos completamente desviados de seu próprio Criador, justamente por considerarem tantos desses escritos lotados de erros como sendo a mais pura Palavra Sagrada. Algo mais trágico não pode haver. Eles partem da premissa, por eles mesmos elaborada, de ter nas mãos a própria Palavra de Deus, e deduzem daí que o Onipotente sempre a protegeu contra toda e qualquer falha. Então me digam quem se alegraria com esse pensamento: o Altíssimo Criador dos Mundos ou Satanás?... Qual deles exultaria em ver o ser humano se agarrar a conceitos torcidos e defendê-los cegamente, com unhas e dentes, com a própria vida se preciso for?... Qual deles sempre procurou fazer a criatura humana afundar no erro e na ilusão, para que se perdesse por toda a eternidade?... Esses fiéis de raciocínio sabem que Satanás é astuto, pois vivem fazendo alarde disso e advertindo seus semelhantes com pausadas palavras, proferidas gravemente à meia-voz. Só não sabem quão astuto ele é na verdade, a ponto de já tê-los enredado por inteiro nas teias da mentira e extinguido seus brios para sempre.

Quando maus, a vontade intuitiva e os pensamentos já constituem pecados, assim como naturalmente as ações más visíveis na matéria. E as palavras? Também estas põem em movimento forças na Criação, desencadeando a respectiva reciprocidade: boa, se forem belas e construtivas; má, se visarem a destruição. Por isso, um sábio de origem árabe, muito sábio mesmo, deixou registradas essas palavras: “Senhor, fazei com que minhas palavras sejam de mel, porque sei que terei de engoli-las de volta.”

Daí também a advertência tão clara: “Quem quer amar a vida e ver dias felizes, refreie a sua língua do mal e evite que os seus lábios falem dolosamente” (1Pe3:10), visto que “a língua do homem pode causar sua ruína” (Eclo5:13), porque a língua má é “mal incontido, carregado de veneno mortífero” (Tg3:8). Assim é que ambos, “morte e vida estão no poder da língua; quem sabe usá-la comerá de seus frutos” (Pv18:21). O rei Davi já sabia que as palavras más acarretariam o justo castigo na reciprocidade: “Serão levados a tropeçar; a própria língua se voltará contra eles” (Sl64:9). Tiago também advertiu que “a língua, pequeno órgão, está situada entre os membros de nosso corpo e contamina o corpo inteiro” (Tg3:5,6). Para ele, a atuação da palavra humana era comparável a “um pequeníssimo leme capaz de governar um grande navio” (Tg3:4,5), tão importante ela é na formação do destino humano na Terra.

No Apocalipse está dito que da boca da besta e do falso profeta sairão “espíritos imundos em forma de rãs” (Ap16:13), e que “estes são espíritos demoníacos com poder de realizar prodígios” (Ap16:14). Isso significa que, no tempo do fim, os falsos profetas farão prodígios com as palavras que saírem de suas bocas, com auxílio do raciocínio hipercultivado (a besta) de todos eles. Deixo ao leitor concluir se isso está ou não a ocorrer nos dias de hoje.

Sobre a importância, infelizmente pouco reconhecida, das palavras proferidas, diz Abdruschin em Na Luz da Verdade, dissertação “A Palavra Humana”:

“As palavras que formais, as frases, moldam vosso destino exterior sobre a Terra. São como sementeiras num jardim que cultivais em redor de vós, pois cada palavra humana pertence ao mais vivo que vós podeis fazer em vosso favor nesta Criação.”

Muitas vezes é o tom que dá valor às palavras, mais até do que seu sentido. Palavras ríspidas podem ferir literalmente a alma daquele que é atingido por elas, através do ódio que as conduz: “a língua falsa odeia os que ela fere” (Pv26:28), ao passo que “palavras gentis são um favo de mel, doçura para a alma e saúde para o corpo” (Pv16:24). A esse respeito, Paulo exortou os Colossenses a conservarem sua palavra “sempre agradável” (Cl4:6) e foi ainda mais incisivo com os Efésios: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e sim unicamente a que for boa para edificação, conforme a necessidade, e assim transmita graça aos que ouvem” (Ef4:29).

Gostaria de citar um sábio ditado que nós, ocidentais, conhecemos muito bem mas que não damos o devido apreço: “O homem é senhor das palavras que não diz e escravo das que profere.” Que sabedoria encerra essa frase!...

E mais uma vez quero emendar aqui um outro ensinamento antigo, que nos diz que a palavra humana, antes de ser proferida, necessita passar por três portais. No primeiro portal, um guardião pergunta se aquela palavra é verdade; se for, permite que prossiga. No segundo portal, um outro guardião pergunta se deve ser proferida; confirmada essa necessidade, a palavra tem acesso livre até o terceiro e último portal. Chegando lá, o respectivo guardião pergunta se está na hora de dizer. Sendo aquele o momento certo de enunciá-la, então a palavra está liberada para finalmente sair da boca do ser humano. Depois de ter passado pelos três portais, a palavra humana só poderá trazer bênçãos onde pousar. Todas as nossas palavras deveriam passar por esses três portais! Para quem deixou a Verdade da Palavra de Deus frutificar dentro de si, isso acontece sempre, de modo automático, sem necessidade de demoradas ponderações prévias. Sobre a passagem pelo terceiro portal, a Bíblia nos dá a seguinte imagem: “Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo” (Pv25:11).

A vontade intuitiva má, o coração mau de um ser humano, dá ensejo não somente a maus pensamentos, mas também a palavras más. São três tipos distintos de culpa, que terão de ser resgatados de uma maneira ou de outra pelo autor. Apesar de as palavras poderem ser consideradas como um tipo de ação, no início do Cristianismo os teólogos Tertuliano e Orígenes já faziam uma distinção entre pecados de pensamento, de palavra e de atuação. As palavras testemunham de uma maneira terrenamente perceptível aquilo que vai dentro do íntimo da respectiva pessoa, o que reside em seu coração. A imagem que Jesus deu desse processo é a seguinte:

“O homem bom, do bom tesouro do coração tira o bem, e o mau, do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que está cheio o coração.”

(Lc6:45)

Também o falar irrefletido, o tagarelar, constitui um abuso da dádiva de formar palavras; por isso, cada homem deve “ser pronto no ouvir e tardio no falar” (Tg1:19), pois “no falar excessivo não falta o pecado” (Pv10:19). Falar em demasia nunca foi boa coisa, e disso se apartam os sábios: “Na boca dos tolos se encontra o seu coração; no coração dos sábios se encontra a sua boca” (Eclo21:26). Em tempos remotos já havia uma advertência muito séria para se manter a boca fechada: “Faze também para tua boca porta e ferrolho” (Eclo 28:25). O sábio rei Davi chegou a pedir ao Senhor que vigiasse a porta dos seus lábios, e jurou para si mesmo guardar a boca com mordaça, para não acontecer de pecar com a língua: “Põe, Senhor, uma guarda à minha boca, uma sentinela à porta dos meus lábios. (…) Vou guardar meu caminho para não pecar com a língua; vou guardar minha boca com mordaça” (Sl141:3;39:1). No que, aliás, fez ele muito bem, pois “quem guarda a boca e a língua preserva das angústias sua alma” (Pv21:23). Na segunda carta que recebeu de Paulo, Timóteo também é advertido a respeito: “Evita igualmente os falatórios inúteis e profanos, pois os que deles usam passarão à impiedade ainda maior” (2Tm2:16). Por fim, pode-se constatar facilmente que só “aquele que detesta a tagarelice escapa do mal” (Eclo19:6).

Não é, pois, nenhum acaso o fato de um tagarela não gozar de confiança, pois sente-se nitidamente que nada de bom pode advir de alguém sempre pronto a falar: “Vês alguém sempre pronto para falar? Há mais coisas a esperar de um insensato do que dele” (Pv29:20). O bispo Pápias, do século II, dizia que “não se deleitava com os que têm muito a dizer, mas com aqueles que ensinam a verdade”.

Assim como tudo quanto é errado, o falar leviano acarreta igualmente conseqüências danosas. Semelhante desleixo constitui um dos muitos pendores que sobrecarregam a alma humana, isto é, algo que fica realmente “dependurado” na alma, e que a faz afundar por efeito da Lei da Gravidade Espiritual. Foi para evitar essa situação tão grave, que Jesus alertou:

“Seja, porém, a tua fala: sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno.”

(Mt5:37)

Tiago repetiu enfaticamente essa mesma advertência à sua comunidade: “Que o vosso sim seja sim e que o vosso não seja não, para não incorrerdes em condenação” (Tg5:12). Em condenação, adverte Tiago… Jesus também advertira que as conseqüências do falar leviano teriam de ser arcadas integralmente pelo autor, visto tratar-se de uma culpa que reclama resgate de algum modo, como qualquer outro tipo de pecado:

“Digo-vos que toda a palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no Dia do Juízo.”

(Mt12:36)

Por aí já se vê como é errado e danoso o linguajar estéril dos jovens dos nossos dias, constituído quase que exclusivamente de gírias e monossílabos, praticamente demandando um intérprete para se poder entendê-los.

Nisso se insere também a necessidade de se conservar a integridade do idioma, dada sua importância no destino dos povos. É verdade que o idioma não é fixo, mas sua mobilidade tem de ser guiada exclusivamente no sentido ascendente, e não voltada para uma pretensa simplificação, que nada mais é do que um enfraquecimento. Ser simples não é ser simplista nem simplório, mas sim ser claro. O surgimento de dialetos numa nação é um sinal muito grave de enfraquecimento do idioma, com conseqüências nefastas para o povo inteiro.

Os alemães sabem muito bem o que isso significa. Pouco antes de Martinho Lutero lançar sua Bíblia, em 1522, a Alemanha encontrava-se ameaçada de cisão territorial como conseqüência do uso de pelo menos cinco dialetos. O Novo Testamento achava-se impresso em catorze versões diferentes. Lutero recusou a idéia de lançar sua Bíblia num dos dialetos vigentes, ou mesmo nalgum pobre alemão. Preferiu a forma íntegra e rica da antiga língua alemã, obrigando o povo a ler a Bíblia em seu idioma verdadeiro. Ele queria que todos os alemães compreendessem muito bem a sua Bíblia, pois acreditava que os cristãos não precisavam de nenhuma mediação da Igreja, e para tanto usou “o modelo da chancelaria da Saxônia seguido por todos os reis e príncipes da Alemanha.” Os alemães tiveram de estudar novamente o alemão para lê-la, e com isso deixaram de lado os dialetos com sua linguagem inexpressiva. O resultado foi que a Bíblia de Lutero, cuja primeira edição data de 1534, acabou contribuindo para manter a pátria alemã unificada. O professor Hans Störig, do Instituto Lexicográfico de Munique, explica que apesar de Lutero não ter tido intenção de ditar normas lingüísticas para seu povo, a divulgação de sua Bíblia acabou atuando fortemente nesse sentido. Posteriormente, o grande escritor Goethe aperfeiçoou ainda mais o idioma germânico, retirando arcaísmos e infundindo valiosos neologismos, a ponto de a língua alemã ser conhecida hoje como “a língua de Goethe”. Hans Störig diz que quem ler as obras de Goethe “encontrará nelas o alemão em sua forma mais elevada, em sua mais bem sucedida síntese de liberdade, profundidade de pensamento e arte da língua.”

Desse modo, o idioma alemão foi não apenas protegido e preservado, mas ainda conheceu uma evolução extraordinária nos últimos séculos. Isso deveria constituir um exemplo para todos nós. Cada povo deveria procurar fazer o mesmo com seu idioma pátrio, cuidando de utilizar a língua materna na sua forma correta. A negligência nisso redunda num tipo específico de pecado, relativo ao modo negligente de falar e de se exprimir as idéias, que tende a piorar cada vez mais com o tempo.

Todo pecado continuamente alimentado, seja de que tipo for, acaba se transformando num pendor. Pela condensação advinda da atração da espécie igual, o pendor aderido à alma se robustece cada vez mais e passa a influenciar poderosamente o respectivo ser humano, levando-o com freqüência a cometer seguidamente a mesma falta. Um círculo vicioso, cujo fim é o descalabro total. Um tal fustigado pecador apresenta seu livre-arbítrio atado pelo pendor, porque sua vontade seguirá sempre naquela mesma presumível direção errada, escrava que está dessa forte tendência para mal, a qual foi alimentada e cultivada por ele mesmo. Seu livre-arbítrio se encontra, pois, completamente tolhido, escravizado, incapaz de cumprir sua função no desenvolvimento ascensional do espírito. Assim é que “o pecado que habita dentro do homem faz o mal que ele não quer” (Rm7:20), de sorte que, conforme Jesus já advertira, “quem comete pecado se torna escravo do pecado” (Jo8:34). A respectiva pessoa pode até reconhecer seu erro: “reconheço a minha iniqüidade e meu pecado está sempre diante de mim” (Sl51:5), mas continua agindo da mesma maneira errada. Passa, por conseguinte, a agir conscientemente de maneira errada, o que evidentemente constitui um fator complicador da sua situação: o dolo.

A pessoa em questão só ficará livre dessa influência maléfica e estorvante da vontade, quando o pendor for radicalmente extinto de sua alma, e não apenas amortecido por mera vontade mental. A bem-intencionada vontade mental não é capaz de fazer mais do que cortar uma das cabeças dessa poderosa Hidra de Lerna do pendor, a qual inevitavelmente renascerá com todo o vigor na primeira oportunidade gerada por uma tentação qualquer.

Se a respectiva pessoa não se livrar totalmente do pendor a ela aderido, então acontece de esse pendor arrastá-la para baixo quando deixar a matéria grosseira, por efeito da Lei da Gravidade, sendo-lhe então muito mais difícil conseguir a libertação. Pendor é algo que realmente pende na alma e a puxa para baixo, devido à sua constituição mais escura e mais densa. Fora da Terra de matéria grosseira não existe mais o corpo físico retardando os efeitos recíprocos, mas sim tudo se torna imediatamente vivência, de acordo com o estado da alma. Por isso, é extremamente difícil nessas circunstâncias livrar-se de um pendor a ela aderido. A alma ficará retida em regiões inferiores, consentâneas à sua igual espécie, até ser arrastada ao círculo da decomposição de tudo quanto se mostra inútil na Criação. A culpa de um destino assim tão trágico é, evidentemente, do próprio espírito humano: “As próprias iniqüidades enredarão o ímpio, que será preso pelos laços de seus próprios pecados. Ele morrerá, porque não observou a disciplina, iludido por sua imensa estupidez” (Pv5:22,23).

No Antigo Testamento, a culpa como responsabilidade diante do Criador é expressa pelo termo hebraico ’asham, cujo significado literal é “responsabilidade que permanece até a culpa ser removida”. Unicamente uma firme vontade espiritual, uma vontade interior ardente para o bem, e sobretudo perseverante, pode extirpar de uma vez por todas as sete cabeças dessa aparentemente invencível serpente do pendor e, com isso, remover a culpa em definitivo. Só tem valor a vontade de quem tem vontade!… A vontade espiritual permanente no sentido do bem elimina pouco a pouco os pendores terrenos ou da carne, livrando o indivíduo das regiões da condenação e fazendo-o ascender espiritualmente, o que, por fim, redundará na obtenção da vida eterna, objetivo último do espírito humano: “Quem semeia para a carne colherá o que produz a carne: a corrupção; quem semear para o espírito colherá o que produz o espírito: a vida eterna” (Gl6:8); “Se viverdes de modo carnal morrereis; mas se, pelo espírito, fizerdes morrer o vosso comportamento carnal, vivereis. (…) O pendor da carne dá para a morte, mas o do espírito para a vida e a paz” (Rm8:13,6). Contudo, quem não se der a esse trabalho, de pender para o espírito, já se sobrecarrega com uma nova culpa, pois “aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz, nisso está pecando” (Tg4:17).

Para eliminação dos pendores pecaminosos contribuem justamente os dolorosos efeitos retroativos deles decorrentes, que desse modo estimulam a pessoa atingida a mudar radicalmente a sintonização de seu íntimo, para que não volte a pecar. O efetivo perdão dos pecados se dá, pois, pelo desencadeamento da reciprocidade, quando a pessoa recebe o retorno de sua atuação errada, reconhecendo como justo esse efeito retroativo e tomando a inabalável resolução de não agir mais daquela maneira. A partir daí sua vida se tornará de fato im-pecável, isto é, sem pecados.

As pessoas que no tempo de Jesus ouviram dele: “Teus pecados estão perdoados!” haviam mudado de tal sorte sua sintonização interior, devido a uma vivência especialmente marcante com o Mestre, que com isso ficava consolidada a certeza de que nunca mais tornariam a cair nos mesmos erros, ou seja, de que não pecariam mais. Elas passavam a viver daí por diante em estrita obediência aos ensinamentos de Jesus, aos seus mandamentos, e com isso os pecados ficavam efetivamente perdoados. Essa é a verdadeira graça, propriamente dita, que existe nesse processo automático e natural de perdão dos pecados. O termo “graça”, em seu sentido legítimo, tem o significado de “recompensa”, conforme Lucas faz uso nesse exemplo: “Se emprestais àqueles de quem esperais receber, qual é a vossa recompensa?” (Lc6:34)

Foi esse processo que atingiu aquela mulher pecadora que, ao saber que Jesus estava sentado à mesa na casa do fariseu Simão, foi até lá levando um vaso de alabastro com ungüento e “estando por detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas lágrimas e os enxugava com os próprios cabelos, e beijava-lhes os pés e os ungia com o ungüento” (Lc7:38). Depois de explicar ao fariseu o valor do perdão, Jesus disse: “perdoados lhe são os seus pecados [da mulher], porque ela muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama” (Lc7:47). A mulher mostrou que realmente amava Jesus, a Palavra encarnada, de modo que estava pronta a observar integralmente seus mandamentos, condição indispensável para obtenção do perdão dos pecados. O amor por ela demonstrado é a razão de seu perdão. Jesus esclarece novamente o significado desse amor da mulher nessas passagens dirigidas aos discípulos:

“Se me amais, guardareis os meus mandamentos. (…)

Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele. (…)

Se alguém me ama, guardará a minha Palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as minhas palavras; e a Palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou.”

(Jo14:15,21,23,24)

Guardar os mandamentos de Jesus, ou guardar sua Palavra, outra coisa não significa senão agir em tudo de acordo com esses mandamentos, em todo o querer, pensar, falar e atuar. Isso é demonstrar amor por Jesus.

Aquelas vivências marcantes com Jesus, que propiciavam uma mudança tão radical na vida das pessoas, naturalmente ocorriam também nos casos de milagres. Contudo, se apesar disso elas eventualmente tornassem a pecar no futuro, teriam então de arcar com as conseqüências dessas suas más ações renovadas, como ocorre com qualquer outra pessoa, visto que “os que se deixam enredar de novo e são vencidos, torna-se o seu último estado pior que o primeiro” (2Pe2:20). Foi justamente um alerta desse tipo que Jesus deu àquele homem que acabara de curar de uma enfermidade que já durava 38 anos:

“Olha que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior.”

(Jo5:14)

Fica claro que o homem padecia daquele mal por culpa própria, assim como acontece com toda doença que aflige o ser humano. Por isso, se ele voltasse a pecar, coisa pior ainda lhe sucederia, através de um novo mau efeito decorrente da Lei da Reciprocidade. Daí a exortação para que ele não pecasse mais, sábia atitude de quem ouve e aceita palavras de sabedoria. O livro de Provérbios já diz que as palavras de sabedoria são “vida para quem as encontra e saúde para todo o corpo” (Pv4:22). A relação direta entre doença e pecado também fica patente no caso daquele paralítico de Cafarnaum, que somente após a garantia de remição dos seus pecados pôde ser curado e cumprir a ordem de Jesus: “Levanta-te, pega a tua maca e vai para casa!” (Mc2:11). Tiago também estabelece uma relação entre pecado e doença (cf. Tg5:15). Aliás, a relação pecado/doença já era bem conhecida dos povos antigos, pois o livro de Provérbios também ensina a “afastar-se do mal para ter um corpo com saúde” (cf. Pv3:7,8).

Com base nisso, como poderíamos explicar o caso de crianças que já nascem com alguma enfermidade grave?... Só a reencarnação mantém tudo no lugar e não afronta a Justiça divina. A severa lei mosaica também mostra que as moléstias decorrem da desobediência aos preceitos do Senhor: “Se não puserdes em prática todos esses Mandamentos, se rejeitardes as Minhas leis e detestardes os Meus decretos, recusando-vos a pôr em prática todos os Meus Mandamentos, então eis o que vos farei de Minha parte: porei sobre vós o terror, a tísica e a febre que enfraquecem a vista e minam a saúde” (Lv26:14-16).

Doenças são sempre decorrências de um modo errado de vida. Segundo a escritora Roselis von Sass, o povo Inca não conhecia doenças, tendo permanecido sempre livre do sofrimento causado por moléstias. Acontece que eles também não conheciam a mentira. Não havia sequer uma palavra na língua deles para designar o conceito de mentira... Doenças especialmente graves surgiram com a doutrina mentirosa de Baal. Em sua obra O Livro do Juízo Final, a mesma autora informa: “Quando há sete mil anos, no país conhecido como ‘Babilônia’, o luciferiano ‘culto de Baal’ alastrava-se como uma epidemia, surgiram após curto tempo doenças, doenças até então desconhecidas, alarmando os sacerdotes e respectivos adeptos, deixando-os amedrontados e apavorados.”

Que as doenças estão sempre associadas a uma atuação prévia contrária às leis naturais, já se sabia também pelo antigo livro das Lamentações, do século VI a.C.: “Oh, infelizes de nós, pecamos! Eis porque todo o nosso ser está doente, eis porque nossos olhos estão entenebrecidos” (Lm5:16,17). O próprio rei Davi também sabia que sua saúde abalada era conseqüência do pecado: “Pelo teu furor nada em mim é são, nada intacto nos meus ossos, por causa do meu pecado. (…) Eu dizia: ‘Yahweh, tem piedade de mim! Cura-me, porque eu pequei contra ti!’” (Sl38:4;41:5).

O pecado gera a doença, por efeito da Lei da Reciprocidade – agente da Justiça divina e derivada da Lei do Amor, que tudo abrange e tudo impulsiona para o bem. Por isso, não podemos esquecer nunca que o Amor divino é inseparável da Justiça divina. Um não existe sem o outro, ou melhor, um não age sem o outro. São na realidade uma só coisa na atuação. O ensinamento básico do Judaísmo, de que o que vale é agir de acordo com a Vontade divina, não foi derrubado pelo Filho de Deus, ao contrário. Ele sempre insistiu para que os seres humanos agissem em conformidade com a Vontade do Pai. O próprio Jesus fez várias vezes referências a tudo “que está escrito” (cf. Mt4:4,7,10;11:10;21:13; Mc9:13;14:27; Lc4:4). Sua Mensagem de Amor não tinha o propósito de derrubar as leis, mas sim esclarecer o que estava certo aos olhos do Senhor e o que fora apenas moldado pelo raciocínio humano. Ele fez isso para que essas leis se tornassem uma base sólida para a efetivação do Amor de Deus.

Por isso, também é falsa a crença num Amor divino dissociado da Justiça incorruptível. É uma ilusão desmedida imaginar que o Criador tudo tolera dos seres humanos porque Sua misericórdia é infinita. O perdão de Deus reside unicamente nos efeitos automáticos das leis que regem a Criação, instituídas através de Sua Vontade perfeita. Se uma criatura comete um pecado, isto é, se age contra as determinações do seu Criador, seja através de pensamentos, palavras ou atos, ela insere na Criação algo mau, que de acordo com a Lei da Reciprocidade terá de retornar para ela mesma. Tempo e espaço aí não representam nenhum papel, porque “o Senhor julga até os confins da Terra” (1Sm2:10). Poderá ter agido mal numa vida anterior e mesmo num outro país. Aquilo que fez de errado em algum ponto de sua existência retorna a ela infalivelmente.

Em lugar algum da Criação pode uma criatura se ocultar da Justiça divina. Mesmo que ela tivesse as asas da aurora, a mão do Senhor a alcançaria: “Senhor, tu me examinas e me conheces. Para onde irei, longe do Teu Espírito? Para onde fugirei da Tua presença? Se subo ao céu, lá estás, se desço ao abismo, aí Te encontro. Se utilizo as asas da aurora para ir morar nos confins do mar, também lá Tua mão me guia” (Sl139:1,7-10).

A expressão “asas da aurora” é primorosa para indicar a infalível atuação da Justiça divina. Sempre é aurora em algum lugar da Terra, de modo que se uma pessoa tivesse as asas da aurora poderia estar num local diferente a cada momento. Mas, mesmo que isso fosse possível, a mão justa do Senhor a alcançaria, pois a Justiça perfeita não é limitada pelo espaço e tempo.

A mão do Senhor sempre atinge a criatura em algum ponto de sua existência, guiando e protegendo, ou golpeando e esmagando, conforme o próprio procedimento dela: “A mão de nosso Deus protege todos os que O procuram, mas Seu poder e Sua Ira pesam sobre todos os que O abandonam” (Esd8:22). Abandonar o Senhor Deus outra coisa não é senão agir de modo contrário à Sua Vontade, inserida nas leis naturais, o que sempre acarreta ao transgressor um efeito danoso na reciprocidade: “Se, porém, não Lhe obedecerdes, mas vos revoltardes contra Sua Vontade, então a mão do Senhor pesará sobre vós e sobre o vosso rei, e vos esmagará” (1Sm12:15). Josafá, rei de Judá, também havia chegado a esse reconhecimento: “Na Tua mão está a força e o poder, e não há quem te possa resistir” (2Cr20:6). Através do profeta Jeremias vem mais essa indicação da mão justa do Senhor atuando na reciprocidade: “Desta vez darei a conhecer Minha mão, Minha força; hão de aprender que meu nome é Yahweh” (Jr16:21).

Contudo, se uma pessoa assim duramente atingida no retorno da reciprocidade, reconhecer como justo o golpe que recebeu e procurar daí em diante agir de modo diferente, então ela estará perdoada aos olhos do Criador, pois remiu o erro de outrora. Recebe exatamente aquilo que urdiu para os outros e, ao reconhecer e corrigir seu erro, encontra-se novamente livre, limpa, totalmente liberta do pecado, podendo então prosseguir em seu caminho de desenvolvimento espiritual.

Justiça e Amor! As duas forças impulsionadoras de vida na Criação, e ao mesmo tempo os dois frutos decorrentes das leis auto-atuantes dentro dela, representadas pela imagem bíblica do poder nas mãos do Onipotente, que tudo impelem para o desenvolvimento: “Em Tuas mãos estão o poder e a força; em Tuas mãos o poder de elevar tudo e firmar tudo” (1Cr29:12).

Chegamos agora, nesse nosso apanhado sobre o pecado, a um ponto que tem originado imensa controvérsia e verdadeiro pânico entre os cristãos: o pecado contra o Espírito Santo. No Evangelho segundo Mateus, encontramos a seguinte declaração de Jesus:

“Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Espírito Santo não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir.”

(Mt12:31-32)

A purificação propriamente dita de uma alma humana após a morte se dá no vivenciar de tudo quanto ela gerou através de suas ações, pensamentos e intuições aqui na Terra. Seu intuir, pensar e agir formam os locais por onde terá de peregrinar nos planos iniciais do Além, antes de poder ascender a mundos mais elevados. Desse modo, é a própria pessoa que forma as condições de sua vida futura após a morte. Ela própria cria, para si mesma, um lugar aprazível ou um verdadeiro inferno, dependendo da espécie de seus pensamentos e ações durante a vida terrena.

O próprio inferno, portanto, é uma realidade, sendo para lá levadas as criaturas cujas intuições na Terra já conduziam para o inferno. Também é natural que essa região se encontre “nas profundezas” (cf. Is14:9), pois só nas profundezas o inferno pode estar, em decorrência da Lei da Gravidade. Contudo, o inferno não é nenhuma instituição divina, mas tão-só uma edificação dos próprios seres humanos. Se lemos que “no sétimo dia Deus concluiu toda a obra que tinha feito” (Gn2:2), então fica claro que o inferno não foi criado por Ele, já que não fazia parte de Sua obra original.

Mas voltemos ao pecado contra o Espírito Santo. O trecho correspondente no Evangelho de Marcos é ainda mais incisivo que no de Mateus:

“Em verdade vos digo que tudo será perdoado aos filhos dos homens: os pecados e as blasfêmias que proferirem. Mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado eterno.”

(Mc3:28,29)

A esse respeito, Abdruschin fornece a seguinte explicação em sua obra Na Luz da Verdade, dissertação “Deus”:

“O ‘Espírito Santo’ é a Vontade de Deus-Pai, o Espírito da Verdade, que, apartado Dele, atua separadamente em toda a Criação e que, apesar disso, na qualidade de Filho, como também o Amor, ainda permaneceu estreitamente ligado com Ele, uno com Ele.

As leis férreas na Criação, que atravessam todo o Universo como uma rede de nervos, ocasionando a absoluta reciprocidade, o destino do ser humano ou seu carma são… do ‘Espírito Santo’, ou mais explicitamente: de seu atuar!

Por isso disse o Salvador que ninguém se atreveria a pecar contra o Espírito Santo impunemente, porque, segundo a inexorável e inalterável reciprocidade, a retribuição retorna ao autor, ao ponto de partida, seja coisa boa ou má.”

O ser humano é um fruto da Criação e, como tal, está sujeito às leis que perpassam e sustentam essa obra, as quais foram instituídas pela Vontade do Criador, o Espírito Santo. A Criação é, sim, uma obra do Espírito, mas não uma parte dele próprio. O Espírito Santo Criador permaneceu inteiramente fora da Criação, ou sobre a obra, conforme atestado no Gênesis: “A Terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn1:2). O Espírito Santo não se encontrava, portanto, dentro da Criação, e sim fora dela.

O que está inserido dentro da obra da Criação são as leis que a governam, estabelecidas pelo Todo-Poderoso desde o início dos tempos. Leis perenes, imutáveis, indissoluvelmente entretecidas na sentença “Faça-se a Luz!” (Gn1:3), (3) não admitindo a mínima alteração, conforme nitidamente indicado no modo de atuação da Palavra do Senhor: “Da Minha boca saiu o que é justo, e a Minha Palavra não tornará atrás” (Is45:23). Essa imutabilidade da Palavra divina também foi anunciada por Jesus, que era a própria Palavra de Deus encarnada:

“Passarão o céu e a Terra, porém as minhas palavras não passarão.”

(Mt24:35; Mc13:31; Lc21:33)

O ser humano pode conseguir o perdão de seus pecados por meio da atuação automática de uma dessas leis universais, a Lei da Reciprocidade, que como já esclarecido faz retornar a ele exatamente o que desejou ou fez para os seus semelhantes. Tão-somente assim ele obterá a remição de sua falta, não antes, pois “o justo não poderá viver pela sua justiça no dia em que pecar” (Ez33:12). Com esse resgate fica ele efetivamente libertado da culpa, portanto perdoado, desde que reconheça como errada a sua atuação de outrora e o justo efeito cármico daí decorrente, o que o leva a esforçar-se em melhorar continuamente como espírito humano. É com esse sentido do reconhecimento do erro e da conseqüente mudança interior, como pré-requisitos para o perdão dos pecados, que Pedro exortou aos israelitas: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que os vossos pecados sejam apagados” (At3:19).

Para aquele que conhece as leis da Criação não é difícil imaginar a espécie de sua atuação de outrora, pois não pode receber nada diferente do que foi gerado. Através daquilo que o atinge, ele consegue então reconhecer o seu próprio atuar, e ao reconhecê-lo e firmar propósito de não mais agir daquela maneira (se o que o atingiu foi algo ruim) ele se desliga daquele efeito retroativo e está livre da culpa. Está perdoado de sua falta.

Já aquele ser humano que não tem boa vontade, que no seu âmago mais profundo não se esforça em melhorar e com isso ascender espiritualmente, demonstra não haver se ajustado a essa Lei da Reciprocidade no sentido desejado por Deus. Ao contrário, com seu comportamento inconseqüente ele como que zomba dessa lei, e desse modo os efeitos retroativos de suas más ações não podem constituir ao mesmo tempo remições de suas culpas! Continuarão a atingi-lo dolorosamente, sempre e sempre de novo, sem que com isso possa obter o perdão dos pecados que os originaram. A severa linguagem do Antigo Testamento diz a mesma coisa com essas palavras do Senhor: “Se vos opuserdes a Mim e não quiserdes Me escutar, infligir-vos-ei golpes sete vezes piores, à medida dos vossos pecados” (Lv26:21).

Nenhuma pessoa tem a priori o direito de esperar por perdão. Somente depois de cumprir seus deveres para com seu Criador ela pode nutrir a perspectiva de um futuro perdão. Mas para aquelas criaturas que não querem de modo diferente, fica reservada a dura lei de talião (4) : “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” (Ex21:24). E assim prosseguirá até o Dia do Juízo, quando se tornará evidente a amplitude de todos seus atos malévolos e os maus desígnios de seus corações, que até então procuravam ocultar. Será “no Dia em que Deus vai julgar as intenções e ações ocultas das pessoas” (Rm2:16).

Quem se revolta contra o que o atinge, querendo ver nisso um golpe arbitrário do destino, portanto uma injustiça, não pode remir coisa alguma e continua preso na culpa antiga, além de se sobrecarregar com uma nova. Será, pois, atingido ainda mais duramente no futuro. Sua própria vontade má impede qualquer possibilidade de perdão. É para evitar essa situação que Jesus adverte: “Não oponhais resistência ao mal. Mas, se alguém bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt5:39). O sentido não é o de não resistir a uma pessoa má, e sim o de não opor resistência ao mal, isto é, àquilo que de ruim nos atinge na reciprocidade. A expressão “mal” tinha originalmente o significado de sofrimento, e é nesse sentido, apenas neste, que não devemos “resistir ao mal”, pois uma tal resistência seria fruto de um inconformismo obstinado, cujo efeito seria justamente a derrota diante do mal, o que deve ser evitado a todo custo: “Não te deixes vencer pelo mal” (Rm12:21). Devemos, ao contrário, mostrarmo-nos prontos a ser lapidados pelos maus efeitos recíprocos, para não dilapidarmos as bênçãos que daí advêm. Não devemos nutrir nenhuma revolta pelo justo sofrimento, para que este não torne a nos alcançar no futuro. Agindo assim, venceremos o mal.

Quem se deixa lapidar pela reciprocidade se constitui no ramo bom da videira, aquele que produz frutos e que é podado sempre que se faz necessário, para fortalecê-lo e deixá-lo produzir cada vez mais frutos:

“Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo em mim que não produz fruto Ele o corta, e todo o que produz fruto Ele o poda, para que produza mais fruto ainda.”

(Jo15:1,2)

Já os que se revoltam contra o que os atinge de desagradável na reciprocidade, e não redirecionam sua conduta, se constituem no ramo ruim da videira, que não produz nenhum fruto. São eles os “homens de dura cerviz [nuca rígida], que sempre resistem ao Espírito Santo” (At7:51), isto é, aqueles que se opõem obstinadamente à Justiça divina, que se manifesta através dos efeitos da Lei da Reciprocidade instituída pelo Espírito Santo, a Justiça viva de Deus. Com essa sua deliberada conduta arrogante, permanentemente voltada para o mal e o pecado, uma tal criatura efetivamente blasfema continuamente contra o Espírito Santo, que é a própria Justiça de Deus. Estes serão cortados, pois cometeram a maior das faltas, “o pecado que conduz à morte” (1Jo5:16).

A Mensagem de Jesus indicava aos seres humanos como estes tinham de viver para que, nos efeitos da reciprocidade, as suas culpas fossem de fato extintas, ou seja, para que encontrassem o real perdão dos seus pecados. A obtenção desse perdão, porém, requer um esforço pessoal e permanente de melhoria interior, caso contrário a redenção torna-se impossível. Em sua obra Na Luz da Verdade, Abdruschin novamente esclarece esse ponto na dissertação “O Salvador”:

“Isto não quer dizer, todavia, que qualquer pessoa, num instante, possa ter quitação de suas culpas individuais, mal acredite realmente nas palavras de Jesus e viva segundo elas. Se, porém, viver segundo as palavras de Jesus, então seus pecados lhe serão perdoados. Contudo, isso só se dará aos poucos, assim que o remate se efetivar, na reciprocidade, através dos esforços da boa vontade. Não de outro modo. Diferentemente, porém, será com aqueles que não vivem segundo as palavras de Jesus, sendo-lhes absolutamente impossível o perdão.”

  1. Ver, a respeito, a obra Os Dez Mandamentos e o Pai Nosso explicados por Abdruschin. A leitura desse livro mostra como são simples os preceitos do Senhor. Bastaria ao ser humano cumprir esses Mandamentos, com toda a naturalidade, para viver de maneira correta na Criação e, assim, atingir a bem-aventurança. Esses Dez Mandamentos, corretamente assimilados e praticados, fornecem tudo o que a Bíblia inteira, com seu conjunto de um milhão e meio de palavras, não pode dar ao espírito humano. Retornar
  2. O centavo mencionado por Mateus é o lepto grego, uma moeda fina e minúscula, com diâmetro de um centímetro e peso pouco maior que uma grama. Retornar
  3. Ao leitor que desejar conhecer o universo contido nessa frase indica-se a dissertação “Faça-se a Luz!”, no terceiro volume da obra Na Luz da Verdade, de Abdruschin. Tornar-se-lhe-á claro aí o alcance da sentença: “Ele falou e tudo se fez, ordenou e tudo começou a existir” (Sl33:,9), e também porque o Filho do Homem é chamado no livro do Apocalipse de “o Princípio da Criação de Deus” (Ap3:14). Retornar
  4. A palavra talião provém do latim talis, que significa “tal e qual”. A lei de talião – lex talionis – é a “lei da retaliação”, tendo surgido pela primeira vez no Código de Hamurabi, rei da Babilônia por volta de 1750 a.C., portanto vários séculos antes de Moisés. A semelhança entre esse Código e as disposições do livro do Êxodo são tão evidentes, que não há como não concluir que as determinações do livro bíblico derivaram daquele. Já as prescrições sobre o “boi perigoso” (cf. Ex21:35) derivaram de uma coleção de regras babilônicas ainda mais antiga – as Leis de Esnuna. Retornar