Jesus Ensina aos Homens as Leis da Criação

A Lei do Movimento

“Pedi e dar-se-vos-á, procurai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á.”

(Mt7:7; Lc11:9)

Não é muito difícil reconhecer o ensinamento principal de Jesus contido neste versículo. Trata-se da movimentação! O Filho de Deus exorta aqui os seres humanos a se movimentarem para conseguir o que necessitam ou almejam. Se uma pessoa quiser conservar-se sadia de corpo e alma, tem de se movimentar terrenal e espiritualmente. Do contrário, atrairá para si a doença e a morte, como conseqüência natural de tudo que permanece estagnado na Criação. O que vale para o corpo físico vale também para o espírito, pois trata-se da mesma lei a exigir movimentação contínua do ser humano.

A própria Criação material não pode prescindir do movimento. Ela própria só se mantém e se desenvolve porque permanece em contínua movimentação, num eterno ciclo de formação e decomposição, de frutificação e colheita, conforme essa explicação de Jesus a respeito do funcionamento do Reino de Deus:

“O Reino de Deus é assim como se um homem lançasse a semente à terra, depois dormisse e se levantasse, de noite e de dia, e a semente germinasse e crescesse, não sabendo ele como. A terra por si mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga e, por fim, o grão cheio na espiga.”

(Mc4:26-28)

A necessidade absoluta de movimento em tudo não deixa subsistir a concepção tão em voga entre os cristãos de que basta “crer” no Filho de Deus para se obter a salvação. Tão cômodo não é. “Também os demônios crêem e tremem” (Tg2:19). De nada adianta se o fiel acredita nas palavras do Salvador e ao mesmo tempo não se esforçar muito energicamente, com todo seu ser, em agir de acordo com elas em tudo na vida. De nada adianta apreciar uma boa doutrina ou até ficar “assombrado” com ela, como fez Herodes em relação a João Batista (cf. Mc6:20). É preciso transformá-la em ação. Já bem dissera o apóstolo Paulo aos Coríntios: “O Reino de Deus não consiste em palavras, mas em ação” (1Co4:20). Contemporâneo de Paulo, o rabino Aqiba afirmava que o estudo da Lei de Moisés era importante “porque levava à ação”.

Se fosse possível de outro modo, que o ser humano pudesse conseguir a salvação sem um esforço ascensional próprio, Jesus teria dito: descansai e dar-se-vos-á, aguardai e achareis, contemplai e abrir-se-vos-á… Isso, porém, ele não fez. O próprio interessado é que tem de movimentar-se para se libertar do mal a ele aderido e tomar o caminho da ascensão espiritual. Ele mesmo é que tem de limpar sua alma, ou “lavar sua vestidura” (Ap7:14;22:14) para que “sejam sempre alvas as tuas vestes” (Ecl9:8), pois a alma é propriamente a vestimenta do espírito, seu invólucro ou corpo de matéria fina. É esse corpo fino-material que a própria pessoa tem, pois, de tornar luminoso e radiante, conforme Jesus indica nesta passagem:

“Reparai, pois, que a luz que há em ti não seja trevas. Se, portanto, todo o teu corpo for luminoso, sem ter qualquer parte em trevas, será todo resplandecente, como a candeia quando te ilumina em plena luz.”

(Lc11:35,36)

A necessidade da limpeza interior (da alma) é também claríssima quando Jesus diz que os fariseus só cuidavam de limpar o exterior dos copos e dos pratos:

“Vós, fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapina e perversidade.”

(Lc11:39)

Os fariseus, pois, se mostravam irrepreensíveis em sua observância ortodoxa da religião, enquanto que internamente suas almas permaneciam sujas, repletas de iniqüidade.

Jesus sempre exortava os homens a produzirem, eles mesmos, bons frutos, a se movimentarem portanto, e não permanecerem parados, sonolentamente recostados em suas crenças atávicas:

“Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento, e não presumais de vós mesmos, dizendo: Temos por pai Abraão (…).”

(Mt3:8,9)

Unicamente através do movimento é possível produzir bons frutos, e também unicamente através do movimento é possível livrar-se dos maus frutos. A libertação do errado e do mal depende sempre apenas da própria pessoa, da sua movimentação. No esforço sincero e diligente à procura de uma saída do labirinto em que entrou reside uma atitude de doação, e por isso ela pode receber auxílio, em obediência à Lei do Equilíbrio. Não diferentemente. Nem imediatamente. Foi ela própria quem quis entrar no labirinto, apesar de todas as advertências e avisos. Mais ainda, ela até ajudou a construir esse labirinto, com sua maneira errada de pensar, falar e atuar. Por isso, ela tem primeiro de reconhecer que se encontra de fato num labirinto, e que por conseguinte a vida que leva tem de estar errada. Depois desse reconhecimento ela precisa ainda mostrar que realmente quer sair de lá, ou seja, tem de se esforçar, de se movimentar nesse sentido. Então, e somente então, receberá o auxílio pretendido, mas sempre na medida exata do seu próprio empenho. Não mais. Essa é a verdadeira graça outorgada a todos que encaram a sério sua própria salvação. Trata-se de uma efetivação da Lei do Equilíbrio, em atuação conjunta com a Lei do Movimento, ambas derivadas da grande e imutável Lei da Reciprocidade.

A mudança de rota e o viver de modo correto tornou-se difícil ao ser humano atual devido à indolência de seu espírito, preso que está dentro do labirinto de erros. Tornou-se difícil, mas não impossível. É um caminho penoso, mas não existe outro. Não outro que leve para cima, pois estreito é o caminho que conduz às alturas… O labirinto do viver errado foi construído numa região muito profunda, consentânea com a Lei da Gravidade Espiritual. Por isso, quem quiser sair de lá precisa de início escalar paredões íngremes, ásperos, até conseguir, pouco a pouco, vislumbrar um pouco mais de luz à sua frente, quando então a subida não será mais tão difícil e a saída já estará nitidamente reconhecível. Este é o único e verdadeiro esforço que um ser humano pode e tem de fazer em prol de sua salvação, diligentemente, e não acaso cursar uma faculdade de teologia ou gastar a vida inteira no estudo árido e unilateral da Bíblia. Quem for sincero nessa sua empreitada e se esforçar correspondentemente, perseverando sem desanimar, poderá então contar com uma corda para se alçar desse lugar. A corda, evidentemente, não o livra do esforço de subir, mas o conduz para fora com absoluta certeza, se ele mesmo não esmorecer na escalada.

A verdadeira Palavra de Deus é essa corda de salvação, que Ele oferece às Suas criaturas humanas em via de se perder. A Palavra é uma corda! Não é uma escada rolante e muito menos um elevador. Quem quiser se salvar tem de subir por essa corda. Ele mesmo tem de subir! De modo algum será içado comodamente do labirinto de erros em que fez tanta questão de medrar ao longo de milênios. Sem esforço próprio ninguém ascende, ninguém progride, sequer um milímetro. Tão-somente os esforços pelo bem podem produzir um “fruto glorioso” (cf. Sb3:15), e somente aquele que se esforça poderá um dia apoderar-se do reino dos céus:

“Desde os dias de João Batista até agora o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele.”

(Mt11:12)

O pesquisador W. E. Vine afirma que o verbo grego empregado aí, biázo, indica “um esforço vigoroso”. Sim, é isso mesmo. Sem um esforço espiritual vigoroso para cima ninguém poderá entrar no reino espiritual.

Outro tema relacionado é um trecho da carta de Paulo a Timóteo, onde este fica sabendo que a fé tem de ser combativa no bom sentido, atuante, e que a vida eterna precisa ser conquistada por ele mesmo: “Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna à qual foste chamado” (1Tm6:12). A garantia da conquista permanente da vida eterna é dada justamente pela Lei do Movimento. O espírito humano que já atingiu o estado de poder viver no plano espiritual da Criação, continua a se movimentar ininterruptamente lá, procurando retribuir ao seu Criador, em alegre atuação, a dádiva da vida eterna. Ele procura se aproximar do equilíbrio entre o dar e o receber, mas como, por mais perfeita que seja a sua atuação, permanecerá sempre um eterno devedor de seu Deus, visto que continua a receber renovadas graças por efeito da Lei da Reciprocidade, a existência nos páramos dos bem-aventurados se torna uma atividade constante e feliz: a vida eterna, que se traduz num progresso crescente e ilimitado da atuação espiritual humana dentro da Criação.

É uma ilusão desmedida imaginar que a fé cega seja uma espécie de nave espiritual coletiva rumo ao céu, a desobrigar seus ocupantes do esforço contínuo em melhorar como seres humanos. Esse tipo de fé não passa de um entorpecente espiritual, de um veneno letal para o espírito humano. Quem se deixa embalar pelos dogmas da fé cega torna-se um suicida espiritual. Só faz enfraquecer voluntariamente seu espírito com essa inatividade forçada e, a tal ponto, que se torna por fim incapaz de se movimentar por si mesmo, acabando por morrer de inanição espiritual. Docemente iludido com a quimera de uma “salvação pela graça”, de uma “justificação pela fé”, o que encontrará no fim do caminho será sua própria morte espiritual.

Também os que chamam de “orar aos céus” a litania cotidiana de reclamar da vida e choramingar misérias, não passam de mendigos preguiçosos. Desprezíveis como estes. Com essa indolência inaudita, o futuro que tais deserdados do destino formam para si mesmos é pavoroso. Com suas asas espirituais atrofiadas eles só vegetam ainda nessa vida… embalados na cadência monocórdia de suas rezas recitadas, sem dispor mais de forças para encontrar o verdadeiro pão da vida e muito menos de se alimentar com ele.

Diz Abdruschin na Mensagem do Graal, dissertação O Clamor pelo Guia:

“A expressão ‘Ora’ eles aceitaram, mas o restante ‘e trabalha’, ‘trabalha em ti mesmo’, que a isso se liga, ignoraram.”

Vemos a confirmação dessa sentença na primeira epístola aos Tessalonicenses: o “Orai sempre” (1Ts5:17), prontamente aceito, seguido do trabalha em ti mesmo, ignorado por todos: “Não apagueis o espírito. Examinai tudo com discernimento. Guardai-vos de toda espécie de mal” (1Ts5:19, 22).

Guardar-se de toda espécie de mal é permanecer livre de todas as trevas, é livrar-se delas!… De nada nos servem as orações se ao mesmo tempo não procedermos uma radical reorientação em nossas vidas: “Abandonemos as obras das trevas e vistamos as armas da Luz!” (Rm13:12).

A necessidade premente de observar a Palavra, como pré-requisito para se obter a bem-aventurança, aparece ainda em vários outros trechos dos Evangelhos. Vejamos mais alguns deles:

“Pois o enviado de Deus fala as palavras Dele, porque Deus não dá o Espírito por medida. O Pai ama o Filho e todas as coisas tem confiado às suas mãos. Por isso quem crê no Filho tem a vida eterna; quem, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a Ira de Deus.”

(Jo3:34-36)

As duas primeiras frases testificam que Jesus é uno com Deus-Pai, que é um plenipotenciário, pois “fala as palavras Dele” e “tudo Ele confiou às suas mãos”. O próprio Jesus reafirma essa contingência: “Eu e o Pai somos um” (Jo10:30). A expressão “não dar por medida” equivale a não dar de forma limitada. A corroborar o conceito de que Jesus e o Pai são um só, está a expressão que ele usava quando se dirigia a Deus: Abba, palavra aramaica que designa, em sentido intimista, apenas o próprio pai daquele que fala (cf. Mc14:36), algo como “papai” ou “pai querido”. Essa expressão escandalizava sobremaneira os fariseus, visto que nas preces judaicas jamais poderia ser utilizada para se dirigir ao Criador. O fato de Jesus chamar Deus de Pai, e de uma forma tão íntima, foi um dos principais motivos do ódio suscitado contra ele: “Os judeus ainda mais procuravam matá-lo, pois, além de violar o sábado, chamava a Deus de Pai, fazendo-se assim igual a Deus” (Jo5:18). Numa conversa com Filipe, Jesus reitera que ele e o Pai são um só:

“Não crês que eu estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo, mas o Pai que permanece em mim faz as Suas obras.”

(Jo14:10)

Jesus, o Filho de Deus, é desse modo a própria Palavra de Deus encarnada. Nesse sentido é que está dito que quem crê no Filho, portanto na Palavra enviada à Terra por Deus, terá a vida eterna. O apóstolo Pedro sabia que a possibilidade da vida eterna estava contida nas palavras de Jesus: “Tu tens as palavras da vida eterna” (Jo6:68), disse dirigindo-se ao Mestre.

Contudo, esse “crer” está muito longe de significar crença passiva, como supõem tantos adeptos entusiasmados da fé cega. Significa, isso sim, pôr em prática essa Palavra, e com o máximo empenho possível, do contrário, para todos os efeitos a respectiva pessoa “se mantém rebelde contra o Filho e não verá a vida” (Jo3:36), ou seja, não alcançará a vida eterna. Tão-somente pela ação, pelas obras provenientes da movimentação do espírito, a fé adquire real valor. Em sua rica epístola, Tiago esclarece de modo magistral essa necessidade: “Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras” (Tg2:18). Algumas Bíblias substituem “obras” por “ações” nessa frase, aproximando-a ainda mais do sentido original.

O profeta Neemias também indicava, à sua maneira, a necessidade imperiosa de se cumprir a Palavra de Deus, sem o que o ser humano seria lançado fora de Sua Casa, isto é, seria expulso da Criação: “Sacudi também a dobra do meu manto e disse: ‘É assim que Deus sacudirá fora de Sua Casa e longe dos Seus bens todo homem que não cumprir Sua Palavra!’ ” (Ne5:13). Cumprir a Palavra de Deus é cumprir Sua Vontade. Neemias estava absolutamente certo com essa analogia, pois tudo quanto existe fora do Criador pode efetivamente ser considerado como Seu manto: o Senhor “está envolto num manto de Luz” (Sl104:2), o qual tem de ser mantido limpo pelos seres que o tecem e pelos que podem nele viver, como nós, seres humanos. No entanto, nenhuma parte desse manto contém em si algo do próprio Criador, tendo apenas se originado Dele, mais precisamente de Sua irradiação. A centelha de uma chama não é o próprio fogo, assim como um raio de luz solar também não é o próprio Sol…

Todo aquele que imagina que basta “crer” na pessoa de Jesus e “aceitá-lo” como Salvador, cantando hinos em seu louvor, para logo ter perdoados seus pecados e angariado libertação através do “sangue derramado de Cristo”, age exatamente como os mais obliterados pagãos com suas idolatrias, conforme reza a doutrina de dois livros hindus: “Os que são purificados por se banharem nas águas deste rio [Ganges], e cujas mentes estejam devotadas a Quesava, obtêm a libertação final. O rio sagrado, ouvindo-se dele falar, ao ser desejado, visto, tocado, ao se banhar nele, ou ao se cantar hinos por ele, dia a dia purifica todos os seres. E aqueles que mesmo vivendo à distância exclamarem ‘Gangá e Gangá’ [nome do rio Ganges] serão libertados dos pecados cometidos durante as três existências prévias. Males acumulados durante gerações são destruídos. Simplesmente por banhar-se no Gangá a pessoa é imediatamente purificada.” A crença num perdão tranqüilo e fácil dos pecados é, pois, idêntica entre hindus e cristãos. Nisso, eles são irmãos de fé. E o resultado – nulo – de semelhante concepção é o mesmo para ambos os grupos.

Quando Jesus permaneceu alguns dias entre os samaritanos, a pedido deles, o evangelista João diz que “muitos outros creram nele por causa de sua Palavra” (Jo4:41), o que evidencia estarem dispostos a cumprir, a transformar em ação essa Palavra de Jesus em suas vidas. Realmente, de nada vale ser apenas um ouvinte da Palavra, porque “se alguém é ouvinte da Palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que contempla num espelho o seu rosto natural, pois a si mesmo se contempla e se retira, e logo se esquece de como era a sua aparência” (Tg1:23,24). Desse modo, esse tal nunca terá se apossado realmente da Palavra, a ponto de ela estar como que impregnada em sua carne e em seu sangue, e por conseguinte também jamais se encontrará de fato justificado diante do Senhor.

Por isso, Jesus já advertiu outrora que o espírito é bem-intencionado, mas a carne é fraca: “O espírito é decidido, a carne é fraca” (Mt26:41). A carne, isto é, o corpo físico, não transforma em ação tudo aquilo que já era vontade no espírito, de modo que “o corpo corruptível é um peso para a alma” (Sb9:15).

Cabe ressaltar que a doutrina da “justificação pela fé” – que como não poderia deixar de ser acabou contribuindo decisivamente para o atual estado de sonolência espiritual do cristão – está em grande medida baseada numa falha de tradução de um texto bíblico. Sim, numa mera e antiga falha de tradução. Com efeito, na Bíblia hebraica, o profeta Habacuc afirma que “o justo viverá por sua fidelidade” (Hab2:4), enquanto que a versão grega da Septuaginta (1) utilizada pelo apóstolo Paulo trazia no lugar a fórmula: “o justo viverá pela sua fé”, o que é algo muito diferente (cf. Rm1:17; Gl3:11). Essa segunda forma só faz fomentar a indolência espiritual do ser humano, inimiga visceral de qualquer possibilidade de salvação, pois fé cega não salva ninguém: “Que adianta alguém dizer que tem fé, quando não a põe em prática? Acaso esta fé poderá salvá-lo?” (Tg22:14). Cerca de metade dos manuscritos gregos da época, porém, traziam a forma correta: fidelidade. Se Paulo tivesse feito uso de um desses manuscritos, o erro não teria passado para o Novo Testamento.

E se Lutero tivesse feito uso de sua intuição, não teria sido induzido ao erro de uma “salvação pela fé”, doutrina que desenvolveu justamente dessa passagem torcida da Epístola aos Romanos. Conseqüentemente, também não teria propalado o que chamava de “sensação bem-aventurada de segurança”, uma certa “convicção íntima” de salvação que mais danosa não poderia ser para a movimentação do espírito humano. Nem Paulo nem Lutero sabiam das falhas da Septuaginta, a qual difere do texto original em cerca de 2700 palavras, ou cerca de um oitavo da Bíblia hebraica.

É oportuno sublinhar que os manuscritos mais antigos das cartas de Paulo são unciais, isto é, manuscritos que usam somente maiúsculas, sem sinais de pontuação e separação de palavras. A pontuação surgiu muito tempo depois, sendo usada de acordo com a interpretação pessoal dos copistas. A sentença de Paulo, tal como aparece em muitas Bíblias, acabou ficando desse tipo: “Aquele que é justo pela fé, viverá.” Agora o leitor atente para essa outra forma, perfeitamente possível, com uma simples mudança de posição da vírgula e a substituição de fé por fidelidade: “Aquele que é justo, pela fidelidade viverá.” Que diferença! A primeira forma adormece o espírito, a segunda o desperta!...

Também chama a atenção o fato de a expressão “mediante a fé”, que aparece no seguinte trecho da carta aos Romanos: “Por sua ação mediadora [de Jesus] é que temos acesso, mediante a fé, ao estado de graça no qual nos encontramos” (Rm5:2), não constar de vários códices antigos, portanto mais abalizados, particularmente o Vaticanus do século IV. (2) É de se supor que tenha sido convenientemente inserida aí por algum dedicado teólogo dos tempos antigos. A fé só adquire real valor quando evidenciada pela ação e sustentada pelo amor, estágio indispensável para que se transforme em convicção: “Com efeito, em Jesus Cristo, o que vale é a fé agindo pelo amor” (Gl5:6). A convicção é o degrau seguinte à fé e superior a esta; a convicção advém da fé anterior: “Guarda para ti, diante de Deus, a convicção que te é dada pela fé” (Rm14:22).

Quando Paulo diz que “a pessoa é justificada pela fé, sem a prática da lei” (Rm3:28), visto ser “de todo evidente que a lei não justifica ninguém diante de Deus” (Gl3:11), está aludindo às obras prescritas pela lei mosaica, às coisas meramente exteriores dos fariseus, tal como se vê hoje em dia também nas religiões cristãs, apenas revestidas de formas diferentes. A fé de que Paulo fala não é uma fé morta. Aos Tessalonicenses, ele diz que para serem salvos é preciso que tenham “fé na Verdade” (2Ts2:13). Na Verdade, não na mentira de uma crença falsa. E essa fé na Verdade por ele aludida também não era algo contemplativo, inerte e passivo, mas se evidenciava pela ação.

Ao contrário do que é comumente apregoado, Paulo exortou os cristãos a demonstrarem pela ação a mudança interior ocorrida em suas vidas. Ele, por exemplo, insistiu com as mulheres para que deixassem as coisas fúteis como penteados complicados, pérolas e vestes luxuosas e “se ornassem com boas obras” (1Tm2:10), as verdadeiras boas obras oriundas de uma vida reta: “modéstia e bom senso” (1Tm2:9). Ao seu amigo Tito, Paulo exortou expressamente: “Em tudo, mostra-te modelo de boas obras, de integridade na doutrina, de dignidade, de palavra sã e irrepreensível” (Tt2:7), e ainda afirmou que o povo do Senhor devia ser “zeloso na prática do bem” (Tt2:14). E para que não restasse dúvida sobre o que julgava premente, o apóstolo também instou Tito a falar com firmeza sobre essas coisas aos demais companheiros: “Desejo que tu fales com firmeza destas coisas, para que os que acreditaram em Deus se empenhem na prática de boas obras, pois isso é bom e útil para os homens” (Tt3:8). Essas boas obras são em primeira linha o pensar puro, o falar verdadeiro e o agir correto. Tudo o mais vem daí. Aos Filipenses, Paulo deixou claro que a salvação estava nas próprias mãos deles, como decorrência de sua atuação: “Trabalhai com temor e tremor pela vossa salvação” (Fp2:12). Paulo não foi menos explícito sobre a necessidade de renovação interior, e da nova conduta daí decorrente, em sua carta aos Romanos: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da Vontade de Deus, a saber, o que é bom, o que Lhe agrada, o que é perfeito” (Rm12:2). Com muita freqüência, Paulo exortava suas comunidades para que observassem os Mandamentos.

Todas as demais tradições que associam Paulo ou Pedro com o ensino de uma tranqüila “salvação pela graça” à la Agostinho, sem empenho e mérito próprios, ou não são de autoria deles ou foram “ajustadas” pela comunidade cristã dos primeiros séculos, quando a indolência espiritual, qual nuvem negra abafadiça, já começava a encobrir a verdadeira doutrina de Cristo. Paulo parece até ter previsto isso, pois já na sua época chegou a advertir os Tessalonicenses para que não se deixassem iludir por “alguma instrução ou carta atribuída a nós” (2Ts2:2). Não podemos nos esquecer também que a Epístola aos Romanos, que aliás não foi escrita por Paulo e sim por Tércio (cf. Rm16:22), onde essas idéias estão mais disseminadas, é muito mais recente do que a Epístola de Tiago, a qual se contrapõe vigorosamente a elas. Tiago morreu martirizado em 60 d.C., o que leva os estudiosos a estimar a data de composição de sua epístola cerca de dez anos apenas após a morte de Jesus, enquanto que a Epístola aos Romanos teria sido escrita pelo menos trinta anos depois da crucificação. Sendo mais antiga, a Epístola de Tiago certamente está mais próxima dos ensinamentos originais de Jesus, de quem, aliás, ele era irmão.

Contudo, se quisermos admitir a hipótese de que Paulo tenha deliberadamente escrito algum despautério desse tipo, então temos de dizer aqui, com toda calma, que Paulo estava errado, e que nesse aspecto sua crença era falsa. A bem da verdade ele já havia se equivocado uma vez, ao supor que a volta de Cristo era iminente em sua época (cf. 1Ts4:17), tendo depois de empurrar alguns Tessalonicenses de volta ao trabalho: “Quem não quer trabalhar também não coma” (2Ts3:10). Pedro apóstolo, igualmente, achava que o fim de todas as coisas era iminente (cf. 1Pe4:7).

Também precisamos levar em conta o aspecto da conversão de Paulo. Ele teve uma vivência muito profunda na estrada para Damasco, que o marcou para sempre. De um momento para outro, passou de erudito fariseu e perseguidor implacável dos cristãos para o mais ardoroso arauto da boa nova de todos os tempos. Nessa experiência dramática ele pôde constatar que mesmo um pecador obstinado como ele poderia ser perdoado, caso redirecionasse totalmente seu modo de ser. O reconhecimento pessoal de que ele, contra toda a lógica humana, poderia ser perdoado de suas graves culpas, certamente lhe pareceu como uma “graça imerecida do Alto”, e simplesmente procurou externar isso de algum modo para seus semelhantes. Ao seu amigo Timóteo ele havia dito ser “o principal dos pecadores” (cf. 1Tm1:15), e mesmo assim pôde encontrar redenção ao dar um rumo totalmente outro à sua vida de até então.

Não conhecemos as palavras exatas que ele usou para explicitar isso aos seus, pois sabemos muito bem que todos os antigos escritos cristãos foram meticulosamente alterados nos séculos seguintes por mãos pouco limpas, impelidas por espíritos menos limpos ainda. Mas podemos ter uma pequena idéia analisando as alterações mais recentes, que por terem sido praticadas em cima da edição latina chamada “Vulgata”, (3) são bem conhecidas e documentadas. Uma delas é a promessa de Paulo aos Efésios: “Pela graça fostes salvos” (Ef2:5). A versão correta, porém, tal como aparece originariamente na Vulgata, é: “Por cuja graça [de Cristo] fostes salvos”. A promessa de salvação sempre esteve diretamente ligada à graça proporcionada pela missão de Cristo, que foi trazer sua Palavra salvadora à Terra. Somente no cumprimento integral dessa Palavra reside a perspectiva de uma salvação, e nunca através de qualquer “dom gratuito”, conforme insinuam as versões vernáculas, conscientemente deturpadas.

Mas a despeito desses erros intencionais inseridos nas palavras de Paulo, algumas de suas posições são mesmo indicativas de falhas próprias. Além do erro sobre a segunda vinda iminente de Cristo, sua concordância implícita com a escravidão então reinante acabou sancionando muitos males posteriores. Não cabe aqui a alegação ingênua e tendenciosa de que a escravidão era uma prática comum naquela época, e que Paulo nada mais fez do que estipular algumas regras para o cristão escravo. A submissão não é uma característica própria do espírito, e por essa razão a escravidão não é natural entre os seres humanos. A considerar como suas as frases a seguir – e parece que são mesmo – podemos afirmar, sem medo de errar, que faltou intuição ao apóstolo nessas suas preleções: “Escravos, obedecei em tudo aos vossos senhores daqui da Terra, não servindo apenas diante dos olhos, como quem procura agradar os seres humanos” (Cl3:22); “Escravos, obedecei aos vossos senhores desse mundo como ao próprio Cristo, com temor e grande respeito e de coração sincero” (Ef6:5). Baseada nessas indicações bíblicas, a seita dos puritanos, um grupo presbiteriano muito rígido, estritamente apegado à letra das Escrituras, fazia normalmente tráfico de escravos durante o início da colonização americana, comprando negros da África e vendendo índios para as Índias Ocidentais. E para os católicos abismados com essa prática dos puritanos, vai a informação de que na Idade Média a Igreja era a maior proprietária de escravos na Inglaterra, e que mais de um século antes dos Puritanos, o papa Inocêncio VIII (reinado de 1484 a 1492) já distribuía gratuitamente escravos mouros aos seus cardeais e amigos. As epístolas de Paulo ratificavam todos esses procedimentos.

Por fim, temos de nos convencer, de uma vez por todas, de que tanto Paulo como seu colega Pedro eram pessoas normais, com qualidades e defeitos como qualquer um, sujeitos a erros e acertos. Vimos que os dois chegaram até mesmo a ter uma querela particular bem áspera. Mas, assim como Paulo, Pedro também ensinava que só o íntimo tem real valor diante do Senhor, e não as coisas exteriores: “Vosso adorno não consista em coisas externas, mas na personalidade que se esconde no vosso coração, marcada pela estabilidade de um espírito suave e sereno, coisa preciosa diante de Deus” (1Pe3:3).

A antiga teologia farisaica de uma salvação obtida através da prática ritualística estava estruturada, a bem dizer, nas mesmas duas pedras angulares da aconchegante teologia cristã atual de uma justificação gratuita pela fé: crença cega e indolência espiritual, os dois principais e mais letais venenos para o espírito humano. Todos os fiéis cristãos que se deixam conduzir aqui na Terra pelo doce encantamento de uma justificação pela fé, obtida por “graça” como gostam de dizer, portanto de uma salvação desvinculada da indesviável Justiça, não vão achar graça nenhuma da realidade que os aguarda após a morte. O terno sentimento de estarem enlevados na fé se transmutará no horroroso reconhecimento de estarem enleados em pesadas cadeias de mentiras. Terão de vivenciar no Além, da forma mais amarga, os frutos gerados por essa fantasia presunçosa, que só pôde medrar no charco da mais viscosa indolência espiritual, desprovida de todo movimento interior. Serão forçados a aprender, da maneira mais dolorosa possível, a severa declaração do Senhor: “Não vou declarar justo o culpado!” (Ex23:7).

Foi para escapar dessa armadilha sedutora de uma utópica salvação gratuita, inventada pelos fomentadores da vaidade e da inércia espiritual, que o salmista clamou ao Senhor para não permitir que fosse iludido, e que o salvasse pela Sua Justiça: “Em Ti, Senhor, me refugio; que eu nunca seja confundido. Salva-me pela Tua Justiça!” (Sl31:2).

As criaturas humanas que sorvem avidamente esse entorpecente inebriante de uma pretensa salvação gratuita desprovida de qualquer mérito pessoal, e que não cultivam dentro de si mais nenhum anelo pelo espiritual, nenhum anseio pela Luz, apenas provam com isso sua absoluta inutilidade na Criação.

Na hora da angústia suprema, que procurem então se defender com sua doce fé cega, que procurem clamar com aparente direito que acreditavam piamente “serem deuses” (cf. Jo10:34), que “haveriam de julgar os próprios anjos” (cf. 1Co6:3), porque assim estava nas Escrituras! Talvez se convençam então, nesse momento, de que numerosos textos bíblicos foram de fato alterados e enxertados por dedicados servidores de Lúcifer, a fim de moldá-los à vaidade e presunção humanas, constituindo com isso os ardis mais eficazes para conduzi-los diretamente à perdição eterna, transformando-os em “cadáveres desonrados, alvos de vergonha eterna entre os mortos” (Sb4:19).

E, no entanto, bastaria um mínimo de esforço, uma pequeníssima movimentação espiritual para se colher trigo verdadeiro em meio ao joio bíblico. Um trabalho que pode fazer a diferença entre a vida e a morte eterna para o cristão. A necessidade de movimentação interior contida no “crer” joanino, mencionado acima, pode ser percebida por qualquer um que ainda ouça a voz da intuição e não seja totalmente alérgico à atividade espiritual. Só não poderá senti-lo aquele cujo raciocínio já cuidou de amordaçar sua intuição para sempre. Este ficará muito satisfeito em adotar o “crer” letárgico ensinado pelas Igrejas, falso, que nada mais exige dele senão uma submissão bronca às formas mortas de uma fé cega, para glória dele mesmo e de seus assemelhados, mas não da de Deus: “Como vos é possível crer, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus único?” (Jo5:44), adverte Cristo.

A exigência premente de movimentação espiritual implícita no “crer” bíblico pode, inclusive, ser inferida dos próprios originais grego e hebraico. Em hebraico o termo é ’aman, que em essência significa ser firme e sólido, e daí fiel e atuante. A palavra correspondente em grego é pisteuo, que igualmente possui um significado muito mais profundo. Nessa palavra, que aparece nada menos que 248 vezes no Novo Testamento, estão implícitos os conceitos de “colocar dentro da fé”, “manter ligação pessoal por meio de uma certeza absoluta”, “comprometer-se pessoalmente com a fé”, jamais indicando algo parecido com “aceitar apaticamente”, conforme transparece do conceito de fé atualmente pregado pelas igrejas.

O verbo pisteuein significa tanto confiar como aderir, conforme enfatiza o teólogo Bruno Maggioni: “Deve ser uma confiança tão grande que leve a mudar de vida e a entrar no seu seguimento.” O escritor André Chouraqui esclarece que se trata de uma adesão ao Senhor, à Sua Palavra e à Sua Vontade. Em sua premiada versão francesa da Bíblia, ele substituiu o “acredito”, geralmente usados como tradução de pisteuo, por “adiro” e “tenho adesão”, indicando com isso a necessidade de um engajamento absoluto, com responsabilidade pessoal, na doutrina de Jesus. Em seu Evangelho de 21 capítulos, João usa o verbo grego “crer” (pisteuein) nada menos que 98 vezes, e nenhuma vez o substantivo correspondente à “fé” (pistis), o que mostra a distinção que fazia entre os dois conceitos. O especialista Josep-Oriol Tuñi diz que essa freqüência ainda é aumentada se considerarmos as “numerosas expressões equivalentes a crer e que são usadas no mesmo sentido: receber Jesus, suas palavras, seu testemunho.” Josep-Oriol dá outros 17 exemplos nesse sentido no Evangelho de João.

Quando Jesus afirmou: “Vim como Luz para o mundo, para que aquele que crê em mim não permaneça na trevas” (Jo12:46), estava aludindo justamente a esse necessário engajamento em sua Palavra e a conseqüente mudança voluntária de vida, para que a respectiva pessoa pudesse então sair das trevas em que se encontrava. E quando disse àqueles judeus que haviam acreditado nele: “Se permanecerdes na minha Palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos” (Jo8:31), estava do mesmo modo esclarecendo que além de simplesmente acreditar que ele era o enviado de Deus, deveriam também cumprir as diretrizes de sua Palavra, isto é, deveriam em tudo agir de acordo com ela.

Crer em Jesus significa, pois, inserir-se incondicionalmente na Mensagem de Cristo, a qual estipula que a criatura humana tem de se esforçar em agir sempre corretamente, em todas as situações da vida. Crer em Jesus é acreditar na sua Palavra e viver de acordo com ela. É amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo. É fazer aos outros exatamente o que queremos que seja feito a nós.

Se o sentido fosse o que a teologia cristã ensina, teríamos de admitir os maiores absurdos. Por exemplo: um estuprador e assassino pego em flagrante estaria salvo se, ainda no camburão, confessasse Jesus como seu Salvador e acreditasse na sua morte redentora, ao passo que a vítima, caso não fosse cristã, naquele mesmo momento já estaria queimando no inferno. O criminoso vai ficar algum tempo hospedado numa prisão, mas quando morrer será recebido por Jesus no céu, com coros angélicos de júbilo, suficientemente altos para abafar os gritos de dor da vítima assassinada, em seus tormentos nas profundezas infernais. Só mesmo uma pessoa sem nenhum discernimento, com a intuição já totalmente obliterada e a alma já completamente enrijecida, pode aceitar semelhante coisa e outras ainda piores, que decorrem da transmutação do crer atuante, oriundo da severa doutrina de Jesus, na aceitação apática de uma salvação gratuita e imerecida.

E conforme Tiago ainda exorta no tesouro bíblico que é a sua epístola (escrita, aliás, num grego impecável, e com toda justiça conhecida como “Literatura de Sabedoria do Novo Testamento”), é absolutamente indispensável “ser praticante da Palavra, e não apenas ouvinte, enganando a si mesmo” (Tg1:22), haja vista que “alguém é justificado com base naquilo que faz e não simplesmente pela fé” (Tg2:24). Ser praticante da Palavra outra coisa não quer dizer senão viver segundo as leis da Criação, significa praticar a Lei, o conjunto das leis naturais. Como já mencionado, foi precisamente esse conceito que Paulo procurou transmitir ao Romanos:

“Não são os que ouvem a Lei que são justos diante de Deus, mas os que praticam a Lei é que serão justificados.”

(Rm2:13)

Também é significativo que a palavra credere (crer) em latim seja derivada de cor-dare – “dar o coração”… Teodoro, bispo na Cilícia de 392 a 428, assim explicava o sentido desse “crer” aos convertidos: “Quando dizeis ‘creio’ perante Deus, mostrais que permaneceis firmes com Ele, que jamais vos separeis Dele e que julgareis mais elevado, que qualquer outra coisa, ser e viver com Ele, e conduzir-vos de uma maneira que esteja em harmonia com os Seus Mandamentos.”

Guardar os mandamentos de Jesus significa observá-los, isto é, cumpri-los, movimentar-se para tanto. E essa Palavra, que provém do Pai, habitará então dentro daquele que a cumprir. Ter a Palavra habitando dentro de si significa tê-la assimilado de tal modo que se a pratica sem reservas. Tudo quanto uma tal pessoa fizer, todas as suas palavras, pensamentos e intuições, estarão automaticamente dentro do sentido dessa Palavra, como se ela estivesse impregnada em sua carne e em seu sangue. Não precisa mais cismar antes de praticar uma ação qualquer para ter certeza de estar agindo corretamente, pois a própria pessoa se molda integralmente, naturalmente, de acordo com a Palavra. De uma tal pessoa pode-se então dizer que, de fato, Cristo vive nela, pois Jesus foi a Palavra de Deus encarnada na Terra. É nesse sentido que Paulo afirmou aos Gálatas: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim” (Gl2:20). Quem chega a esse ponto, de ter realmente o Filho de Deus habitando dentro de si, isto é, sua Palavra viva, este alcançará a vida eterna: “Quem tem o Filho de Deus, tem a vida” (1Jo5:12).

Contudo, não é preciso se submeter a uma religião instituída para conhecer os mandamentos de Jesus. Bem o contrário, infelizmente. As religiões atuais não ensinam a seguir os ensinamentos de Cristo, senão os delas mesmas, os quais se limitam a citar a doutrina de Jesus e, quando muito, a clamar por salvação, sem que o fiel tenha de despender o mínimo esforço para tanto. Essa contingência pode ser reconhecida por qualquer pessoa ainda viva espiritualmente. O grande escritor russo Leon Tolstoi, por exemplo, chegou a ingressar num mosteiro, mas acabou rompendo com a Igreja e foi excomungado. No entanto, é dele esse testemunho: “A essência do ensinamento de Cristo é a de se seguir seus mandamentos. Aqueles que só repetem ‘Meu Deus, Meu Senhor’ não irão para o céu, mas sim apenas aqueles que cumprem a Vontade de Deus.” Tolstoi poderia orgulhar-se de sua excomunhão. Poderia colocar o decreto excomungatório num quadro, com uma bela moldura, e exibi-lo com orgulho a seus temerosos concidadãos, como um atestado legítimo da mais genuína liberdade de espírito, da mais aguçada vivacidade espiritual, que rejeita qualquer comodismo e superstição. A sua “heresia” acabou convalidando sem querer o sentido original dessa palavra, que oriunda do grego hairesis significava simplesmente “uma escolha”. Uma escolha absolutamente certa no seu caso.

Só cumpre a Vontade de Deus quem cumpre a Sua Palavra. É com esse sentido, o da aceitação e prática integrais da Palavra, que a Ceia foi instituída por Jesus. O comer de seu corpo e o beber de seu sangue, simbolizados pelo pão e o vinho, significam a aceitação e o cumprimento total da Palavra de Cristo, já que ele próprio era a Palavra encarnada, “o pão de Deus que desceu do céu” (Jo6:33). Esse conceito não era de difícil compreensão na época, pois os judeus sempre usaram a metáfora de “comer e beber” para indicar a acolhida no íntimo de algo relevante. Nisso está o significado da declaração de Jesus: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer viverá eternamente, e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne” (Jo6:51), “pois minha carne é verdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida” (Jo6:55). Assim, quem comesse de sua carne e bebesse de seu sangue teria a vida eterna, mas quem a isso se recusasse ficaria privado dela (cf. Jo6:53). Essa condenação seria imposta mesmo que uma tal pessoa participasse exteriormente da Ceia eucarística, pois continuaria impura caso não tivesse assimilado interiormente a Palavra: “Examine-se pois a si mesmo o homem, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque todo aquele que o come e bebe indignamente, come e bebe para si a condenação” (1Co11:28,29).

Jesus jamais poderia imaginar que, alguns séculos depois, essas suas palavras tão belas dariam origem a violentas disputas entre os teólogos de variadas tendências. No início, a comemoração da Ceia era acompanhada de uma simples refeição entre os cristãos, onde cada convidado trazia um prato para a mesa comum. A refeição era abençoada pelo bispo local com uma “oração de ação de graças” – a eucharistia (do grego charis – graça). Com o tempo, porém, essa oração de ação de graças tornou-se, ela própria, uma consagração dos elementos da Ceia, e a repetição do rito passou a representar a “renovação do sacrifício vicário” de Jesus, algo que nunca havia ocorrido nas primeiras celebrações.

É claro que os antigos romanos não poderiam mesmo entender uma tal doutrina, e julgavam que a seita cristã praticava uma espécie de canibalismo com suas idéias de comer “carne e sangue”. A prática do beijo de saudação entre irmãos e irmãs (como os cristãos se tratavam) – o chamado “ósculo santo” (cf. Rm16:16; 1Co16:20; 2Co13:12; 1Ts5:26), prática que Justino confirma em sua obra Primeira Apologia, do ano 150 – foi vista pelos romanos como prova de que o incesto também era prática comum entre os membros da seita. Tudo isso contribuiu para incrementar as perseguições cristãs no início da nossa era. Não é de admirar que o historiador e senador romano Tácito (25d.C. – 125d.C.) tenha chamado o Cristianismo de “detestável superstição”, e os cristãos de antanho de “pessoas notoriamente depravadas”. E que um outro romano daquela época, Luciano de Samosata (115d.C. – 200d.C.), tenha afirmado que os cristãos “adoravam um sofista crucificado e viviam segundo suas leis”. As trevas não iam perder uma oportunidade dessas de deturpar os ensinamentos de Jesus já no nascedouro do Cristianismo.

A Ceia instituída por Cristo antes de sua morte foi uma Ceia de despedida, tal como transparece no Evangelho de João (cf. Jo13:1-4). Um documento apócrifo conhecido como Doutrina dos Doze Apóstolos, muito bem conceituado até hoje, traz instruções para uma refeição de ação de graças, mas em nenhum momento a relaciona à “morte expiatória” de ninguém. Essa concepção só foi estabelecida mais tarde, com a contínua repetição da Ceia associada à idéia de uma “morte sacrifical” de Cristo. Sedimentada tal concepção, surgiu o debate de se saber até que ponto Jesus estaria efetivamente presente naquela consagração, levada a efeito milhares de vezes por dia, no mundo inteiro.

Essa controvérsia eucarística entre os cristãos pouco difere daquela irrompida entre os antigos fariseus, quando Jesus afirmou que sua carne era o pão vivo que ele daria ao mundo, para que quem dele comesse vivesse eternamente (cf. Jo6:51). Tal como os atuais cristãos, os fariseus de outrora só conseguiam fazer uso de seu limitado raciocínio na tentativa de compreender as palavras de Cristo, ao invés de simplesmente hauri-las com a intuição: “Os judeus discutiam entre si: ‘Como é que ele pode dar a sua carne a comer?’” (Jo6:52). Os cristãos de hoje também acham que Jesus de alguma forma quis dar literalmente seu corpo para ser comido entre os fiéis. O que efetivamente é deglutido na Ceia é que se tornou a grande questão entre eles.

Nesse embate teofágico pelejam os defensores da “consubstanciação” (protestantes sacramentalistas) e os da “transubstanciação” (católicos). Os primeiros acreditam que o corpo e o sangue de Cristo se unem espiritualmente ao pão e ao vinho durante a Ceia, enquanto que os últimos crêem que pão e vinho são efetivamente transformados no corpo e no sangue reais de Jesus por ocasião da consagração. O fato de esses elementos continuarem tendo invariavelmente a aparência e o sabor de pão e de vinho é designado de “acidente” pela teologia católica, isto é, uma contingência meramente acidental. A transubstanciação foi fixada como dogma de fé em 1215, no Concílio Latrão IV, o qual estabeleceu que “cada partícula da hóstia consagrada, não importa quão partida esteja, contém todo o corpo, sangue e alma de Jesus Cristo”. (4) Essa concepção foi reafirmada no Concílio de Trento, em 1551, com a declaração de que “Jesus Cristo está verdadeira, real e substancialmente presente no santo sacramento”, com o complemento de que os demais sacramentos ministrados pela Igreja, instituídos por Cristo, também eram indispensáveis à salvação dos leigos, e que a confissão auricular era uma prática divina. A hóstia passou a ser erguida durante a celebração como uma reação às heresias de então, que negavam a presença de Jesus na eucaristia.

A transubstanciação acabou, inclusive, dando ensejo a novas abordagens eucarísticas, como a veneração da custódia e a negação do cálice aos participantes da missa, para evitar que algum fiel eventualmente derramasse o vinho transubstanciado. Já os protestantes consideravam inaceitável que o vinho não pudesse ser oferecido aos participantes da celebração. Uma xilogravura do século XVI, no início da eterna briga entre católicos e protestantes, mostra um pastor condenando ao inferno um padre que celebrava uma missa, porque apenas o pão era oferecido aos fiéis. Esse primeiro século de contenda entre as duas grandes facções antagônicas já deixava antever o que o futuro nos reservaria em termos de encarniçada rixa cristã. Na Inglaterra, a rainha Maria I (1516 – 1558), católica fanática, perseguiu sem tréguas os protestantes, ostentando no final do seu reinado a cifra de 280 “hereges” devidamente queimados, enquanto que sua irmã e sucessora Elisabeth I (1533 – 1603), protestante convicta, cuidou de acossar a seu modo os católicos do reino… Para quem meneia a cabeça diante de uma tal intolerância medieval, saiba que até o ano de 1835 a discriminação contra católicos era legal em algumas regiões dos Estados Unidos, e que no Brasil, não faz muito tempo, filhos de pais espíritas não podiam freqüentar escolas onde estudavam crianças católicas.

Desde a Idade Média os cristãos vêm brigando entre si para ver quem detém a concepção exata sobre os mistérios da Ceia instituída por Cristo. No ano de 1054 o papa e o patriarca ortodoxo (equivalente ao papa na Igreja Ortodoxa) se excomungaram mutuamente devido à discórdia sobre se o pão da Ceia devia ser levedado ou não… Certamente nenhum dos dois se lembrou da advertência de Paulo: “Evita as discussões tolas e descabidas, sabendo que geram rixas” (2Tm3:23).

Essa importante divergência teológica não parece ter preocupado muito os fiéis da época medieval, que consideravam a hóstia consagrada portadora de poderes mágicos, independentemente do modo de preparo. Na Inglaterra, especialmente, era prática comum levar a hóstia às escondidas para curar doenças de animais, apagar incêndios, fertilizar o solo, preparar encantamentos de amor, proteger criminosos, etc.

É interessante notar que na remota Antiguidade ninguém teria aceitado a idéia de que uma hóstia pudesse conter a divindade, conforme se depreende dessa confissão do rei Salomão: “É verdade que Deus poderia habitar sobre a Terra? Os próprios céus e o céu dos céus não te podem conter!” (1Rs8:27). O primeiro mártir cristão, Estevão, também sabia que “o Altíssimo não mora em casa feita por mãos humanas” (At7:48). Parece que naquelas épocas longínquas as pessoas tinham uma noção mais acertada da grandeza do Todo-Poderoso do que os fiéis cristãos de hoje.

Mas voltemos às exortações de Jesus para se cumprir sua Palavra. O trecho a seguir é uma ratificação do anterior:

“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como também eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e no seu amor permaneço.”

(Jo15:10)

Mesmo quando Jesus dava as indicações necessárias para o ser humano tornar-se um “filho” de Deus, estava subjacente a necessidade de movimentação interior:

“Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.”

(Mt5:9)

Aqui Jesus faz menção àqueles que possuem legítima paz íntima, e que são capazes, devido à sua pureza de alma, de transmitir essa paz aos seus semelhantes. Paz interior, porém, só pode possuir quem assimila e cumpre a Palavra. Tão-somente este é conduzido pelo Espírito de Deus, a Sua Vontade Sagrada, podendo ser considerado como uma criança da Criação ou um “filho” de Deus: “Os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, esses é que são filhos de Deus” (Rm8:14). Assim, unicamente com empenho pessoal um ser humano pode alcançar o estado de poder ser considerado um “filho” de Deus. Essa denominação, porém, não significa que ele traga em si qualquer coisa de divino, mas sim que pelo direcionamento correto do seu livre-arbítrio ele passou a cumprir as determinações do Criador contidas na Palavra, tornando-se então, por adoção, um Seu “filho”. Só poderemos ser tidos na conta de “filhos adotivos” de Deus se cumprirmos a Palavra transmitida por Seu Filho unigênito, enviado por Ele à humanidade pecadora: “Deus enviou o Seu Filho, (…) para que nos seja dado ser filhos adotivos” (Gl4:4,5).

Que é necessário cumprir os mandamentos contidos na Palavra para alguém poder tornar-se um “filho” do Todo-Poderoso Criador, também fica patente no trecho a seguir:

“Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para que vos torneis filhos de vosso Pai celeste.”

(Mt5:44,45)

O sentido que transparece dessas palavras é: fazei isso que digo, cumpri o que determino, para que então possais tornar-vos filhos do Pai celeste. Cumprida essa exigência, a respectiva pessoa estará de fato “nascida de novo”, ou “nascida de Jesus ou de Deus”, pois não pecará mais: “Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado” (1Jo3:9), só exercendo a justiça: “Reconhecei que todo aquele que pratica a justiça nasceu dele” (1Jo2:29). No trecho abaixo Jesus elucida a situação dos “filhos de Deus”, tidos como merecedores de subsistir no Juízo e permanecer vivos espiritualmente por toda a eternidade:

“Os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento, mas os que são havidos por dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os mortos, não casam nem se dão em casamento. Pois não podem mais morrer, porque são iguais aos anjos, e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição.”

(Lc20:34-36)

Jesus havia sido inquirido aí por um grupo de saduceus a respeito da ressurreição dos mortos. Os saduceus não acreditavam neste conceito (cf. At23:8), e é forçoso dizer que pelo menos nisso estavam certos. De fato, não há nada na Torá ou Torah (da raiz hebraica yarah – ensinar, instruir), indicando algo parecido com a idéia corrente de “ressurreição dos mortos”. De mais a mais, já o antiqüíssimo livro de Jó, que se supõe ter sido escrito entre os século XI e X a.C., é bem taxativo a respeito. Na sentença reproduzida a seguir, a expressão dormir é um eufemismo para indicar a morte, como normalmente acontece nos escritos do Antigo Testamento: “Assim como o homem quando dormir não ressuscitará, a menos que o céu seja consumido não despertará, nem se levantará do seu sono” (Jó14:12). Ou seja, é mais fácil o céu ser consumido do que um morto ressuscitar em carne.

Jó sabia muito bem que a morte terrena era um acontecimento natural, apenas o “lugar de encontro de todos os mortais” (Jó30:23). Ele foi tão claro em seu ensinamento contrário a uma idéia de ressurreição corpórea dos mortos que, por ocasião da tradução da Bíblia hebraica para o latim, a chamada Vulgata, um outro trecho de seu livro foi intencionalmente torcido e retorcido com vistas a justificar essa doutrina da ressurreição física dos mortos, já em voga na Igreja. O trecho no original hebraico dizia textualmente:

“Eu sei que meu defensor vive e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra; e mesmo que me tenham destruído a pele, na minha carne, contemplarei a Deus.”

(Jó19:26)

O paciente Jó está simplesmente dizendo que por maior sofrimento que padecesse aqui na Terra, não perderia sua confiança no Senhor; continuaria a contemplá-Lo na observância de Suas leis, nitidamente reconhecíveis na Criação. É evidente que não se trata de um “ver” literal. É o mesmo sentido da bem-aventurança expressa por Jesus: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt5:8). Agora, o leitor preste bem atenção nessa mesma sentença dita por Jó tal como aparece na Vulgata latina, a qual serviu de base para as primeiras traduções nas línguas modernas: “Pois eu sei que o meu redentor vive e que, no último dia, eu ressuscitarei da terra e, de novo, serei revestido da minha pele; e, na minha carne, eu verei a Deus.” Comentários dispensados…

A idéia da ressurreição dos mortos defendida pelos fariseus estava baseada na tradição oral, a qual era rejeitada pelos saduceus. A concepção reinante na época junto aos fariseus sobre essa ressurreição é a que lamentavelmente subsiste ainda hoje, isto é, a de uma ressurreição física (corpo terreno) no Dia do Juízo Final, algo completamente impossível segundo as leis perfeitas da Criação.

Impossível realmente. Como será que as pessoas imaginam um tal acontecimento surreal em relação a si mesmas? Emergindo do túmulo e flutuando no ar com um corpo glorioso, envolto em esvoaçantes vestes brancas? E que idade terá esse corpo? Seguramente uns vinte e poucos anos… Por que não oito ou oitenta? Por que não exatamente “trinta anos em perfeito vigor”, como ensina Agostinho? E quem foi cremado e teve suas cinzas espalhadas ao mar, como fica sua situação? E o cristão que tiver a má sorte de ser evaporado numa explosão atômica? E um seu antepassado distante, tão desafortunado quanto, que foi integralmente devorado pelos leões no Coliseu romano? Voltará à vida de excrementos fossilizados, ou quiçá da raiz dalguma velha oliveira italiana por eles adubada?... O Homem de Neanderthal também vai ressuscitar no final dos tempos com aquele mesmo corpo desengonçado?

O fato é que nem Moisés nem Jesus ensinaram um absurdo desse quilate, de que o corpo físico ressuscitaria no final dos tempos. Nem no final nem antes. Aquela estória de sepulcros se abrindo e corpos de santos ressuscitando logo após a morte de Jesus é tão-só fruto de uma fantasia desregrada, que não pode impressionar ninguém capaz de refletir por si mesmo e que ainda ouve a voz de sua intuição. E que “santos” eram aqueles? Quando foram canonizados e por quem? A primeira canonização de que se tem notícia data do ano 993... Seriam aqueles antigos santos que “oferecem sacrifícios consumados pelo fogo ao Senhor” (Lv21:6)? Santos que matavam animais inocentes? Por que tiveram a primazia de ressuscitar antes de todo mundo? E teria sido mesmo uma primazia?... O retorno à vida daquela sinistra multidão de espectros parece mais roteiro de um filme de terror: “Abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos, que estavam mortos, ressuscitaram; e saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na Cidade Santa e apareceram a muitos” (Mt27:52,53). Posso perguntar onde anda esse pessoal? Ainda perambulando pela Cidade Santa e assombrando a muitos? Ou teriam morrido uma segunda vez?... Não sabiam esses mortos-vivos santificados que “aos homens está ordenado morrerem uma só vez” (Hb9:27)? Ou será que subiram todos irmanados ao céu, com seus novos corpos ressurretos, sem darem a mínima a que “carne e sangue não podem herdar o Reino de Deus” (1Co15:50)? Acaso há alguma testemunha ocular dessa sublevada ascensão coletiva de defuntos insepultos?...

Por falar em ascensão corpórea, ninguém também viu o bom ladrão subindo em carne e osso para o céu no dia da crucificação, o que naturalmente teria sido fácil de constatar, já que naquele mesmo dia de sua morte ele estaria no Paraíso, conforme asseverou Jesus.

Aquele bom ladrão ascendeu ao Paraíso como espírito humano depois de sua morte terrena, em obediência ao processo natural de evolução previsto na Vontade de Deus, quando não havendo mais necessidade de novas encarnações o espírito ascende ao reino espiritual, enquanto que o invólucro terreno permanece na matéria, de onde se originou: “o pó voltará à terra de onde saiu, e o espírito voltará para Deus que o concedeu” (Ecl12:7), conforme, aliás, já fora prescrito ao homem terreno desde os primórdios: “tu és pó e ao pó retornarás” (Gn3:19).

Na sua longa conversa com Nicodemos, Jesus também esclareceu essa diferenciação:

“O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do espírito é espírito.”

(Jo3:6)

Os próprios samaritanos, tão desprezados pelos judeus, não ensinavam a idéia de ressurreição dos mortos, e o próprio apóstolo Paulo ainda ratificou aos gregos de Corinto, com uma clareza meridiana, que “carne e sangue não podem herdar o Reino de Deus” (1Co15:50). Aliás, os gregos daquela época, convictos dos ensinamentos de seu patrício Platão sobre a imortalidade da alma, nunca engoliram a idéia de uma ressurreição física do corpo terreno, algo incompatível com as leis vigentes, e que seria indigno de Deus e de Sua perfeição. Nem havia na língua grega um termo para exprimir essa idéia, e por isso os textos bíblicos fazem uso aí de duas palavras comuns: “levantar” e “despertar”.

Os gregos costumavam fazer um trocadilho com a palavra sōma (corpo) e sēma (tumba), e adotavam como regra de vida o princípio basilar do grande filósofo grego, segundo o qual “não se pode acreditar em nada que seja indigno de Deus”. Nesse ensinamento platônico estava implícito o preceito de que se deve dar a Ele, ao Todo-Poderoso Criador, a honra da perfeição, pois “na verdade, tudo é Dele, por Ele e para Ele” (Rm11:36). Dos escritos de Platão, eles também sabiam que o mal era basicamente a ausência de Deus e que o ser humano é livre em sua escolha (Timeu), e também que não podia haver dois deuses: um bom e outro mau. Se o mundo ia alternadamente bem e mal, como uma roda que gira ora para a frente e ora para trás, então isso se devia ao fato de obedecer ora à impulsão divina, ora a si mesmo (Política).

A crença antinatural de uma ressurreição corpórea foi mais um produto exclusivo do raciocínio humano torcido, que só consegue divisar valores no que é material. O conceito correto referente à ressurreição citada na Bíblia é: ressurreição de tudo quanto é morto durante a época do Juízo Final. No tempo do Julgamento final, tudo quanto está aparentemente morto e sepultado no espírito humano, todas suas falhas e pendores serão despertados para a vida, terão de se manifestar, para que ele se mostre como realmente é, e assim se julgue. É esse o sentido da expressão: “Teus mortos, porém, reviverão! Seus cadáveres irão se levantar!” (Is26:19).

Quanto aos espiritualmente mortos, não vão ressuscitar, mas sim acordar no Julgamento, quer queiram quer não. Os mortos espirituais serão despertados para o reconhecimento de sua culpa na época do Juízo, que é “o tempo do julgamento dos mortos” (Ap11:18), antes de serem extirpados da Criação. Os espiritualmente vivos, porém, “ressuscitarão de entre os mortos” (Rm7:4) para a vida eterna; estes, portanto, ressurgirão dentre os espiritualmente mortos, os condenados no Juízo. É a eles que se dirige o brado: “Desperta, ó tu que dormes, levanta de entre os mortos, e Cristo te iluminará” (Ef5:14). Cristo aqui significa a Palavra da Salvação, que era ele próprio.

Essas duas situações são retratadas no livro de Daniel, onde ambas as espécies de seres humanos despertarão no Juízo, mas apenas aqueles que tiverem seus nomes escritos no Livro da Vida obterão a vida eterna: “Só escapará, então, quem for do teu povo, quem tiver seu nome inscrito no Livro. Muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, para o horror eterno” (Dn12:1,2). A situação dessas duas espécies de seres humanos despertadas no Juízo é mostrada da seguinte maneira no livro de Provérbios: “A luz dos justos brilhará jubilosa; a lâmpada dos maus se apagará” (Pv13:9).

Sobre o destino desses maus, os espiritualmente mortos que acordarão para o horror eterno, os “mortos que foram julgados segundo suas obras” (Ap20:12), também podemos ler nos livros de Isaías e da Sabedoria: “Estão mortos, não reviverão, são sombras, não se levantam mais. Tu castigaste, destruíste, apagaste a memória dessa gente” (Is26:14); “Deus os precipitará, silenciados, de cabeça para baixo, sacudi-los-á desde as suas bases; eles ficarão em desolação até o fim, mergulhados na dor, e sua memória perecerá” (Sb4:19).

No Evangelho de João também aparece essa imagem do despertar espiritual no Juízo, onde uns acordarão para a vida eterna e outros para a condenação:

“Vem a hora em que todos os que estão nos túmulos ouvirão sua voz, e sairão. Aqueles que fizeram o bem ressuscitarão para a vida; e aqueles que praticaram o mal, para a condenação.”

(Jo5:28,29)

Os espiritualmente vivos é que são, portanto, os verdadeiros ressurretos espirituais, que “se entregam a Deus como vivos de entre os mortos” (Rm6:13), aqueles que devido à sua radical transformação interior fizeram jus ao galardão da vida eterna, podendo então ser chamados “filhos de Deus”, pois Ele não é Deus de mortos e sim de vivos, conforme esclarece Jesus:

“Quanto à ressurreição dos mortos, não tendes lido no Livro de Moisés, no trecho referente à sarça, como Deus lhe falou: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ora, Ele não é Deus de mortos, e sim de vivos.”

(Mc12:26,27)

Nenhuma dessas declarações do Senhor Jesus justificam a concepção de uma ressurreição física dos mortos. O corpo terreno é formado de matéria, e em razão disso terá de permanecer sempre no âmbito material do qual se originou, jamais podendo alcançar outros planos da Criação situados acima dele, os quais são de espécie e constituição completamente diferentes. Uma decorrência absolutamente natural e lógica de leis eternas, imutáveis e perfeitas. No assim chamado Além, no mundo de matéria mais fina, só podem estar almas humanas, cuja constituição é idêntica à do respectivo plano. E no plano mais alto a que um ser humano pode alcançar, no plano espiritual denominado Paraíso, só podem estar espíritos humanos exclusivamente, sem invólucros de outras espécies. Jamais um corpo material poderá ascender até o plano espiritual da Criação, ou mesmo a regiões acima deste. Isto, as leis perfeitas da Criação não permitem.

Não posso deixar de registrar aqui a opinião de um eminente teólogo tradicional, que afirma ser heresia a crença na subsistência da alma “às expensas da ressurreição corporal”. Tire o leitor suas próprias conclusões dessas palavras do sobranceiro teólogo: “Essa [heresia] não ocorre com tanta freqüência entre eruditos e teólogos cristãos, mas sim entre o povo leigo, simples e biblicamente semi-analfabeto.”

Ressurreição corpórea, porém, é uma concepção tão inadmissível, tão contrária às leis da Criação, que essa impossibilidade absoluta foi aproveitada por Abraão na imagem que fez durante aquela conversa com o ex-homem rico no Além, para convencê-lo de que seus parentes jamais acreditariam em suas advertências: “Se não escutam Moisés nem os profetas, mesmo se alguém ressuscitar dos mortos, não acreditarão” (Lc16:31).

Ressurreição corpórea, a bem dizer, verifica-se em cada nascimento terreno. Uma ressurreição na carne, em virtude da nova vida terrena que se inicia, e não uma ressurreição da carne, pois a alma, o invólucro mais fino do espírito, é sempre o mesmo, podendo se apresentar mais limpo ou mais sujo, conforme viveu o ser humano, o que fatalmente se evidenciará naquela nova vida terrena. O que muda em cada encarnação é unicamente a vestimenta mais externa, denominada corpo humano terreno, num processo que se repete várias vezes mas que não é infinito, visto que para tudo há um tempo determinado, e assim também para o desenvolvimento previsto do espírito humano. Durante esse período concedido para seu desenvolvimento, o ser humano repete continuamente o ciclo de morte e renascimento, de partir para o mundo do Além e, de lá, retornar para uma nova encarnação: “O Senhor é quem dá a morte e a vida, faz descer à morada dos mortos e de lá voltar” (1Sm2:6).

O escritor e teólogo grego Orígenes, um dos mais destacados pensadores cristãos, já ensinava a “preexistência da alma” nos primórdios do Cristianismo, idéia aceita também por outras figuras de destaque daqueles tempos antigos, como Jerônimo e Clemente de Alexandria. Orígenes não tinha nenhuma dúvida sobre a preexistência da alma e a reencarnação. Contudo, no Concílio Constantinopla II, em 553, seus ensinamentos foram formalmente declarados heréticos, e assim permanecem até hoje.

A concepção de vidas sucessivas foi desaprovada naquele Concílio por influência do imperador Justiniano, cuja esposa, escravocrata convicta, teria ficado apavorada com a possibilidade de ter de reencarnar como escrava… A reencarnação foi rejeitada num pleito sinodal, tendo perdido pelo apertado placar de 3 a 2. Há quem sustente que o fator preponderante para essa derrota não foi a ingerência do imperador, mas sim a percepção dos clérigos da época de que o conceito reencarnacionista enfraqueceria o poder da Igreja, já que concederia aos católicos tempo demais para buscarem a salvação. Agostinho chegou a escrever uma carta ao papa Inocêncio I, advertindo-o sobre a necessidade de se condenar as idéias sobre vidas sucessivas, sob pena de a Igreja perder a sua própria autoridade... Além disso, se um fiel pudesse continuar evoluindo após a morte, seja no Além ou numa nova vida terrena, então não haveria mais lugar para indulgências e muito menos para missas encomendadas (e bem remuneradas) em prol dos entes falecidos. Seria um desastre!

Se o retorno à matéria para uma nova vida terrena não fosse um fato, seriam falsas todas as inúmeras assertivas bíblicas que prevêem uma dura reciprocidade para os maus, terrenamente visível, a qual não se tenha verificado durante a mesma vida em que esses atos malévolos foram praticados. Nesse caso, a injustiça campearia por toda a Bíblia, e um livro poderia ser escrito só com esses relatos de aparente injustiça. A própria Palavra de Jesus estaria desqualificada, pois em relação aos crimes cometidos contra os antigos profetas ele anunciou: “Por isso se pedirá conta a esta geração do sangue de todos os profetas derramado desde a criação do mundo, (...). Sim, eu vos digo: esta geração terá de prestar conta disso” (Lc11:50,51). Aquela geração má teria de prestar contas um dia pelos crimes praticados contra os profetas, decorrente da Lei da Reciprocidade. Se o resgate não ocorreu naquela vida em particular, veio seguramente numa outra, possivelmente até na atual.

A alegação de muitos teólogos cristãos, contrários à reencarnação, de que “aos homens está ordenado morrerem uma só vez” (Hb9:27) é novamente apenas fruto de uma estreiteza de visão. Nosso corpo físico, de fato, morrerá uma única vez, visto que uma ressurreição no mesmo corpo é coisa impossível. O ser humano espiritual, porém, o eu individual, não cessa de existir com a morte terrena. Ele só deixará de existir na Criação se sofrer a morte espiritual, que é o acontecimento mais terrível que pode atingir um espírito humano que já tenha chegado à autoconsciência. Aquela criatura que se desviar da Palavra do Senhor, agindo contra as Suas leis, será por fim arrastada à essa morte espiritual, o que evidentemente só ocorrerá uma vez e para sempre. Mas isso será então apenas culpa dela própria exclusivamente, visto que “a alma que pecar, esta morrerá” (Ez18:4), de modo que “cada um morrerá por seu próprio pecado” (Jr31:30). O Talmude hebraico também enfatiza a gravidade dessa incondicional reciprocidade para o espírito humano ao afirmar que “não há morte sem pecado, e não há sofrimento sem iniqüidade.”

Ressalte-se que o salmista bíblico também diz que os “mortos descem todos ao Silêncio” (Sl115:17), ao passo que “nós, os vivos, bendiremos o Senhor, desde agora e para sempre” (Sl115:18). Se para os espiritualmente vivos esse louvor ao Senhor era “para sempre”, então não poderia tratar-se de uma única vida terrena, mas sim da existência total do espírito humano, que compreende várias vidas na Terra e também no Além, até poder viver eternamente (para sempre portanto) no Paraíso. Enquanto os espiritualmente mortos descem ao Silêncio, sendo por conseguinte esquecidos para sempre com sua morte espiritual, a qual ocorre apenas uma vez, os vivos bendirão o Senhor, também para sempre. Por isso, o salmista podia clamar com a mesma convicção: “Vou guardar Tua Lei para sempre, por todos os séculos!” (Sl119:44).

Jesus não falou explicitamente sobre reencarnação e outros assuntos porque se encontrava frente a uma imaturidade muito grande, até mesmo de seus discípulos. Foi com tristeza que lhes declarou: “Tenho ainda muita coisa a vos dizer, mas não sois capazes de compreender agora” (Jo16:12). No Evangelho de Marcos, principalmente, vemos que os discípulos quase nunca entendiam direito as palavras do Mestre. Se Jesus aparecesse hoje, com mais razão ainda evitaria falar desses temas com os atuais cristãos.

Mas voltemos aos saduceus, quase esquecidos. Eles haviam interpelado Jesus com uma charada que citava uma prescrição de Moisés, na qual consta que no caso de um casal não ter filhos e o marido vier a falecer, o seu irmão deve desposar a viúva e suscitar descendência ao falecido (cf. Dt25:5-10). Com base nisso, inventaram uma estória mirabolante de sete irmãos, na qual o mais velho era casado e não tinha filhos. Ao morrer esse irmão mais velho o segundo desposa a viúva, sem também ter filhos com ela. O segundo marido também morre e a situação se repete com o terceiro. E assim vai até o sétimo, o último. A questão suscitada pelos saduceus era: “De qual irmão a mulher será esposa no dia da ressurreição, visto que os sete a desposaram?” (Lc20:33).

Jesus explica que enlaces matrimoniais tal como conhecemos na Terra não existem nos planos do Além, e cita como exemplo a situação dos que se tornam “filhos de Deus”. Diz ele que os que forem dignos de ressuscitar dentre os mortos, ou seja, aqueles aptos a alcançar a vida eterna, “não mais se casam nem se dão em casamento” (Lc20:35) como fazem as pessoas aqui na Terra. De fato, relações maritais como conhecemos só existem aqui, no plano da matéria mais grosseira. No Gênesis, por exemplo, não há nenhuma indicação para os seres humanos se “reproduzirem” no Paraíso, mas somente quando estes passam a viver na Terra, degrau indispensável no seu processo de desenvolvimento.

Os filhos da ressurreição também “não podem mais morrer” (Lc20:36), isto é, não sofrerão a morte espiritual ou condenação eterna por ocasião do Juízo Final. Serão iguais aos anjos (5) no sentido de que ambos possuem a vida eterna. Como foram dignos de alcançar a vida eterna, então já podem ser chamados “filhos de Deus”, ou filhos da ressurreição, visto que ressuscitaram dentre os mortos, dos espiritualmente mortos. Novamente transparece aqui a necessidade de esforço pessoal para se alcançar um dia a condição de poder ser chamado “filho de Deus”.

Só quem se esforça em se tornar um “filho de Deus” pela obediência à Palavra – em contraste com os que não cumprem os Mandamentos – pode um dia alcançar a vida eterna, entrar no reino dos céus. Tal esforço equivale a um movimentar-se no sentido do aperfeiçoamento contínuo, observando irrestritamente as leis ou Mandamentos da Vontade de Deus. No trecho a seguir, Jesus sintetiza essa contingência:

“Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar será considerado grande no reino dos céus. Pois vos digo que se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.”

(Mt5:19,20)

Ninguém pode hoje exceder a justiça dos modernos escribas e fariseus apenas “crendo” no Salvador e em suas palavras. Ao contrário. Se para obter a salvação fosse suficiente “acreditar” em Jesus e “aceitá-lo” como Salvador, ele não teria alertado com tanta ênfase os seres humanos para o perigo de entrar pela porta larga e seguir pelo caminho espaçoso do comodismo (cf. Mt7:13). A porta larga não passa de uma ampla arapuca e o caminho espaçoso a que ela dá acesso é falso, pois foram ambos moldados pelo raciocínio humano, atado ao espaço e tempo terrenos. Nunca conduziram para cima, para o reino dos céus, mas sim para baixo, para a morte espiritual. Conforme já dito, o caminho para a vida é muito mais difícil de ser trilhado: ele é apertado, e a porta que lhe dá acesso é estreita (cf. Mt7:14). Em outras palavras, não é um caminho cômodo, confortável, mas sim requer – novamente – esforço pessoal para se poder seguir por ele. Na severa linguagem do apóstolo Paulo, as pessoas precisam desenvolver sua salvação com “temor e tremor” (Fp2:12). Não basta absolutamente acreditar no Senhor e clamar por ele, mas é preciso em tudo agir no sentido da Sua Vontade, pois “a fé, se não tiver obras, por si só está morta” (Tg2:17), ensina Tiago. O lúcido Tiago é mesmo de uma clareza ofuscante sobre esse ponto, pois insiste: “Assim como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras está morta” (Tg2:26). Mais claro impossível.

E como é possível, depois das palavras abaixo, que o ensinamento basilar de Jesus sobre a necessidade de movimentação própria tenha sido desconsiderado?

“Nem todo o que me diz: Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a Vontade de meu Pai que está nos céus.”

(Mt7:21)

Aquele que faz a Vontade do Pai… Somente este entrará um dia no reino dos céus! “O mundo passa, e também a sua concupiscência; mas aquele que faz a Vontade de Deus permanece eternamente” (1Jo2:17). A vida eterna só será alcançada por aquele que atua em conformidade com a Vontade do Senhor, a Verdade divina. É a Lei do Movimento em vigor! Os outros apenas mentem para si mesmos com palavras vazias, imaginando estar inseridos no ensino de Jesus: “Se dissermos que estamos em comunhão com ele [Jesus] e andamos em trevas, mentimos e não praticamos a Verdade” (1Jo1:6).

Em contrapartida, aquele que se movimenta espiritualmente e faz a Vontade do Criador, que cumpre diligentemente as Suas leis, já aqui na Terra tem sua vida transformada, conforme Tiago também prescreve em sua epístola: “Quem considera atentamente a Lei perfeita, Lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, este será bem-aventurado no que realizar” (Tg1:25). Operoso praticante!… A bem-aventurança do espírito humano reside unicamente na sujeição voluntária e diligente às leis universais. Tão-somente este ser humano é realmente livre, ao passo que quem procura “libertar-se” dessas leis torna-se na realidade um escravo, um eterno escravo do pecado…

A bem-aventurança de um espírito liberto não abrange apenas bons efeitos retroativos decorrentes de um modo de vida correto, mas traz consigo também o sentido de proteção contra eventuais retornos cármicos negativos. Quem realmente acolhe a Palavra dentro de si e a pratica, angaria como que um escudo contra antigos e maus efeitos retroativos, que se efetivam pela Lei da Reciprocidade. Um carma pesado, pronto a efetivar-se através de um efeito de retorno ruim, não precisa abater-se com toda sua potencialidade sobre a pessoa que o gerou. Mesmo numa situação de extremo perigo como essa, a criatura humana não fica desamparada, não fica indefesa. Mesmo aqui é ela própria a determinar sua senda, a fornecer os fios com que o tear da Criação tece o tapete do seu destino, com a trama e a urdidura correspondente à sua vontade real. Se ela mudou seu modo de ser nesse intervalo e realmente esforçou-se em melhorar em tudo, cuidando de purificar sua vontade, seus pensamentos, palavras e ações, se nas suas vivências procurou enobrecer tudo com que entrou em contato, se, enfim, procurou cumprir o que prescrevem as Mensagens de Deus, então não concede mais em si nenhuma ancoragem para a efetivação integral de um carma grave. A Lei de Atração da Igual Espécie a protege disso.

Como ela melhorou por esforço próprio, como ascendeu espiritualmente de patamar, então também não traz mais em si a mesma espécie má do retorno cármico. Não pode mais ser atingida integralmente pelo carma ruim a ela ligado, pelo simples fato de que espiritualmente não se encontra mais lá embaixo, naquele mesmo nível de quando o gerou por meio de uma atuação errada qualquer. O efeito cármico danoso só poderá atingi-la de modo muito enfraquecido, bastante atenuado, simbólico até, com o que então será remido da mesma forma.

Exteriormente, essa situação se apresenta como se uma tal pessoa estivesse protegida com um escudo contra as adversidades da vida. Jesus retratou isso na alusão ao homem que edifica sua casa sobre a rocha:

“Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína.”

(Mt7:24-27)

O mau efeito retroativo não causou nenhum dano ao homem prudente, que tinha ouvido e praticado as palavras de Jesus. Note-se que está dito: “quem ouve estas minhas palavras e as pratica”, ou seja, quem se movimenta para inseri-las integralmente em sua vida. Jesus, pois, exorta continuamente os homens para que assimilem sua Palavra e a conservem dentro de si, mediante contínua vigilância. As ações de assimilar e conservar os ensinamentos contidos na Palavra pressupõem indiscutivelmente um esforço próprio, pessoal. Assim, é a própria pessoa que dá forma à sua proteção, como um escudo, não podendo mais ser atingida tão duramente na reciprocidade. O mundo pode até desmoronar à sua volta, mas ela estará protegida: “Se tombarem mil a teu lado e dez mil à tua direita, tu não serás atingido” (Sl91:7).

Isaías também já havia descrito esse importante processo do simbolismo no destino humano quando da transmissão dessa exortação da parte do Senhor, numa linguagem compreensível ao povo da época: “Aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! (...) Então, sim, poderemos discutir, diz Yahweh: Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como carmesim, tornar-se-ão como a lã” (Is1:17,18). A reciprocidade será consideravelmente atenuada pela boa vontade legítima, atingindo o pecador que se esforça pelo bem com uma intensidade diminuída, correspondente a uma nova coloração, suavizada, de suas faltas.

O trecho a seguir fala novamente dessa necessidade de conservação do que foi assimilado, uma atribuição impossível de ser cumprida pela insossa fé cega aprendida. Naquele tempo o sal, de sabor inalterável, era usado para conservar os alimentos:

“Bom é o sal, mas se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restituir o sabor? Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros.”

(Mc9:50)

A necessidade de vigilância contínua fica ainda acentuada sobremaneira no trecho abaixo, quando Jesus fala da perseverança, logo depois de uma menção clara à Lei da Reciprocidade (“não se perderá um só fio de cabelo…”):

“Sereis odiados por todos por causa do meu nome; mas nem um só cabelo da vossa cabeça se perderá. É pela vossa perseverança que ganhareis a vida.”

(Lc21:18)

Pela perseverança ganharemos a vida… vida eterna! Pela nossa contínua vigilância e movimentação espiritual, perseverando no bem até o fim: “Quem perseverar até o fim, esse será salvo” (Mc13:13). Paulo diz o mesmo aos Romanos, ao lhes garantir que o resultado da perseverança em praticar o bem seria a obtenção da vida eterna: “Vida eterna para aqueles que, por sua perseverança em praticar o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade” (Rm2:7). A Epístola aos Hebreus também diz o mesmo sobre a necessidade de movimentação perseverante, no sentido certo: “De fato, é de perseverança que tendes necessidade, para cumprirdes a Vontade de Deus e alcançardes o que Ele prometeu” (Hb10:36). Quem age com essa firmeza será necessariamente feliz, assegura Tiago: “Eis que temos por felizes aos que perseveram firmes” (Tg5:11).

Quero finalizar esse tópico mencionando uma informação da biblista Marie Vidal, estudiosa do Judaísmo. Segundo ela, o pronome relativo hebraico asher é usado para designar a planta dos pés, dando imediatamente a idéia de avanço, de movimentação para frente. Não por acaso, o termo que designa “feliz” é um derivado deste: ashrei. Assim, na etimologia judaica, movimentação no sentido certo e felicidade estão intimamente relacionados, o que é uma verdade primordial.

  1. A palavra “septuaginta” vem do grego e significa “setenta”. Também chamada simplesmente de “LXX”, a Septuaginta é a mais antiga versão grega do Antigo Testamento, traduzida do original hebraico entre 250 e 350 a.C., supostamente por ordem do rei Ptolomeu II do Egito, para atender os judeus que residiam fora da Palestina. O título está ligado à hipótese de ter sido elaborada por 72 tradutores, seis de cada uma das 12 tribos de Israel. O certo é que a tradução não foi obra de um único autor, pois a qualidade varia bastante de um livro para outro. Um aspecto interessante da Septuaginta é que o tetragrama YHWH, que indica o nome de Deus, não foi traduzido para o grego, mas mantido com os caracteres hebraicos originais, o que mostra a profunda reverência que os tradutores devotavam ao nome do Criador. Retornar
  2. Até o século III aproximadamente os livros eram confeccionados em rolos; a partir do século IV passaram a ser montados em códices, em número cada vez maior. Esses códices são os predecessores do livro moderno, constituídos de folhas de papiro (depois de pergaminho) dobradas e costuradas. O códice Vaticanus tem esse nome porque é conservado na Biblioteca do Vaticano, enquanto que o códice Sinaiticus é chamado assim porque foi descoberto no mosteiro de Sta. Catarina, no Monte Sinai, no século XIX. Retornar
  3. O nome Vulgata advém das características do texto, redigido sob forma literária comum, ou “vulgar” no sentido etimológico, de onde surgiu a terminologia de “versão divulgada”. Retornar
  4. Esse Concílio também estabeleceu a proibição da cirurgia na prática da medicina entre as ordens religiosas, para que não se derramasse nenhum sangue. Intervenções cirúrgicas só poderiam ficar a cargo de homens não letrados. Com isso, surgiu uma distinção entre médicos – cavalheiros membros da nobre profissão – e cirurgiões, esses últimos praticantes já de algum trabalho manual, em geral atuando como barbeiros. Retornar
  5. A palavra “anjo” deriva do grego aggélos, que significa “mensageiro”. O correspondente termo em hebraico – mal’akh tem o mesmo sentido. Os anjos são, de fato, os mensageiros da Vontade divina. Os nomes deles e dos arcanjos (do grego arkhos – chefe de anjos) invariavelmente terminam em “El”, que é o mais antigo nome semita referido ao Criador. Retornar