Capacidade Contributiva

Um sistema tributário que se queira ser minimamente justo precisa considerar a capacidade contributiva da sociedade. O nível de renda da população é o indicador mais adequado para medir a sua possibilidade de contribuir para o Estado. No Brasil, todos sabemos, além de distribuída de maneira perversa, a renda média da população é baixa, incompatível com o atual nível da carga tributária. Hoje, para uma renda per capita de R$ 7,32 mil, temos uma carga tributária estimada em R$ 2,62 mil, o que significa sobrar para cada brasileiro uma renda livre de impostos de, apenas, R$ 4,70 mil por ano. O que significa, também, que temos uma carga de impostos de Primeiro Mundo e uma renda per capita de Terceiro Mundo.

Vista a precariedade do nível de renda do brasileiro para sustentar uma carga tributária extremamente pesada, é preciso lembrar que os quesitos renda e capacidade contributiva não são levados em conta nos municípios brasileiros, de modo geral. Um estudo do Departamento Fiscal do BNDES, apoiado em dados de 1998, mostrou que, em média, a contribuição dos munícipes para as receitas próprias dessa esfera de governo era de R$ 57, longe de atingir, minimamente, a capacidade contributiva das suas populações. O estudo mostrou que, enquanto havia municípios que arrecadavam até R$ 473 per capita de receitas próprias por ano, outros arrecadavam não mais do que R$ 11 por ano.

Levantamento feito pela Fundação Prefeito Faria Lima - CEPAM, nos 645 municípios do Estado de São Paulo no ano 2000, revelou disparidades maiores. A contribuição per capita das populações dos diversos municípios para suas receitas próprias ia de mais de mil reais em dois casos e até zero em um deles. Vamos citar dois exemplos:

  1. Igaratá

    É um município pobre, próximo à região metropolitana da Grande São Paulo, e conta com uma população de 5,8 mil habitantes. Sua receita foi formada pelos seguintes valores per capita no ano de 2000: repasse federal pelo FPM de R$ 179,01; repasse estadual pela cota-parte do ICMS de R$ 132,06; receita própria ZERO.

    Porangaba é um município igualmente pobre da região de Sorocaba, e também conta com uma população de 5,8 mil habitantes. Sua receita se formou, no ano 2000, com os seguintes valores per capita: repasse federal pelo FPM de R$ 178,56; repasse estadual de cota-parte do ICMS de R$ 141,26; receita própria de R$ 61,84.

    O que se percebe nos dados destes exemplos? Percebe-se que as condições sócioeconômicas dos dois municípios são idênticas, comparando-se os coeficientes dos repasses federal e estadual. A diferença é que a Prefeitura de Igaratá, benevolente, resolveu abrir mão da cobrança dos impostos de sua competência. Caso típico do não aproveitamento da capacidade contributiva da sua população. Diferentemente da Prefeitura de Porangaba, que arrecadou R$ 61,84 per capita de impostos de sua competência.

  2. Sorocaba

    É um município reconhecidamente rico, industrializado, que conta com cerca de 470 mil habitantes. Sua receita foi constituída pelos seguintes valores per capita no ano de 2000: repasse federal pelo FPM de R$ 14,95; repasse estadual pela cota-parte do ICMS de R$ 203,97; receita própria de R$ 103,08.

    Ribeirão Preto, outro município do interior de São Paulo, todos os números levantados pela CEPAM, que revelam as reconhecidamente rico, está com uma população praticamente idêntica a de Sorocaba, cerca de 470 mil habitantes. Sua receita, em 2000, foi formada pelos seguintes valores per capita: repasse federal pelo FPM de R$ 14,75; repasse estadual pela cota-parte do ICMS de R$ 196,98; receita própria de R$ 135,09.

    Neste caso também, os dados mostram dois municípios de grande porte, ricos e com critérios diferentes de aproveitamento da capacidade contributiva de suas respectivas populações. Enquanto <strong>Ribeirão Preto </strong> cobra melhor os impostos de sua competência, Sorocaba trata a questão com maior parcimônia.

Para reforçar a exemplificação, vamos citar genericamente diferenças de critérios para captação de receita própria pelos municípios do Estado de São Paulo. Os números vão mostrar as enormes disparidades de aproveitamento da capacidade contributiva das populações das municipalidades, estado onde não existem tantas desigualdades de níveis de rendas de uma cidade para outra.

Vamos aos números: dos 645 municípios existentes no Estado, 61 deles cobraram de seus moradores menos de R$ 10 per capita de impostos de suas competências; 264 deles cobraram de R$ 11 a R$ 30 de impostos de suas populações para formação das receitas próprias; 206 outros municípios arrecadaram de impostos de competência local de R$ 31 a R$ 70 per capita; somente 48 do total dos municípios cobraram de R$ 71 a R$ 100 per capita de seus moradores; apenas 39 das nossas comunas paulistas cobraram de R$ 101 a R$ 200; 12 deles cobraram de R$ 201 a R$ 300; e 15 arrecadaram de R$ 301 a mais de R$ 1.000 per capita de seus habitantes de impostos de competência municipal, no ano de 2000.

Apuramos, portanto, que 82 % dos municípios paulistas cobram menos de 70 reais de impostos per capita de seus moradores, para formação de suas receitas próprias, e apenas 18 % cobraram mais de 70 reais por ano. Este quadro no Estado de São Paulo não deve ter mudado, e no conjunto do País a sub-utilização da capacidade contributiva das populações municipais deve ser mais acentuada e as disparidades maiores. Esses exemplos estão sendo citados para mostrar que um novo modelo de tributação, que a reforma deve consagrar, terá que inibir as causas que provocam distorções tão evidentes de critérios adotados para a captação dos recursos potenciais da tributação de competência local. O grande problema que aflora é o populismo fiscal, são as isenções descabidas e a crença de que as esferas superiores da administração têm poder mágico de arrecadar e repassar recursos para os municípios.

O Poder Local precisa ser prestigiado e fortalecido, mas não na base do paternalismo. Cada esfera da administração pública precisa assumir responsabilidades perante suas obrigações de gerir a cobrança dos tributos de sua competência. No caso dos municípios, não é bom pretender nem aceitar tutela, mas apenas reivindicar o que é de justiça, ou seja, maior participação na repartição do bolo tributário explicitado na legislação - e não como um favor que impõe uma negociação na base de concessões de caráter político. O Poder Local precisa ser fortalecido a partir do respeito a sua autonomia, de uma relação adulta e da confiança em sua capacidade de gerir mais recursos e assumir mais encargos.

Até porque, está aí a história para comprovar, o populismo fiscal na esfera municipal só tem servido para privilegiar grupos de pressão e propiciar disputas para atrair empresas e contribuir para empobrecer ainda mais os municípios, que abrem mão dos impostos de suas competências, prejudicando as suas populações que se vêem privadas dos serviços que as administrações locais têm o dever de prestar aos seus cidadãos. E mais: o prefeito que não arrecada seus impostos fica cada vez mais dependente das chamadas “verbas negociadas” com os executivos federal e estadual, que só são obtidas pela ação de parlamentares no famoso jogo da aprovação do orçamento da União e dos Estados, comprometendo o bom desempenho do Poder Legislativo como Poder independente e fiscalizador, pois fica sujeito às pressões do Poder Executivo. É o nosso velho conhecido “balcão do toma-lá-dá-cá”, que precisa ser banido da cultura política nacional.

Outra consequência do precário aproveitamento da criados 1.370 unidades administrativas do Poder Local, quando foi promulgada a Constituição atual, até o ano de 2001, foram de criar novos municípios, basta dizer que, de 1988, quando autônomos. Para se ter uma idéia da generalização da prática devido ao incentivo dado aos distritos para se tornarem está na proliferação de novas unidades administrativas locais, capacidade contributiva da imensa maioria dos nossos municípios passamos de 4.189 para 5.559 municípios.

O desdobramento de muitos municípios em outras novas unidades é visto pelos seus respectivos prefeitos como uma forma de atrair mais recursos para uma mesma área, já que o novo município passa a receber a sua cota-parte do ICMS e do Fundo de Participação da esfera federal. E o resultado é que esses recursos não vêm para beneficiar a população e sim para pagar mais prefeitos, mais secretários, mais vereadores e mais funcionários, sobrando muito pouco para benefício dos moradores do lugar. O pior é que são recursos transferidos de outras áreas e não resultado de uma maior atividade econômica local, geradora de riqueza e empregos produtivos.

Do ponto de vista do País como um todo, pode-se considerar que temos uma carga tributária elevada, superior ao nível de renda da população no seu conjunto, mas pode-se afirmar, também, que existem vários segmentos da população com capacidade contributiva elevada que não contribuem para o Estado, ou se contribuem, o fazem muito abaixo de suas possibilidades. É notória a sub-taxação da propriedade territorial, das transações e negócios imobiliários, das atividades econômicas que vivem na informalidade, dos rendimentos do capital financeiro, sem falar na sonegação ou uso de brechas da legislação para não pagar tributos. Aliás, expediente adotado exatamente por aqueles que mais podem pagar. A reforma precisa corrigir essas deficiências do sistema tributário.

Para ilustrar a afirmativa, vamos citar um levantamento feito pela Secretaria da Receita Federal que, cruzando dados da CPMF referentes ao ano de 1998, constatou que pelo menos 1.362.000 declarações do Imposto de Renda eram incompatíveis com a movimentação das contas bancárias dos seus declarantes. Desse total, a SRF pediu ao Ministério Público federal que investigasse 1.154 casos: de São Paulo, 463 empresas que movimentaram naquele ano entre R$ 50 milhões e R$ 1 bilhão; mais 446 pessoas físicas que movimentaram no mesmo período entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões cada uma, que se declararam isentas do imposto de renda. Do Rio de Janeiro, a SRF mandou investigar 88 pessoas físicas que movimentaram um montante de R$ 886 milhões e declararam que não tinham nenhum imposto a pagar. Só essa amostragem de dados evidencia a precariedade do nosso sistema de cobrança dos grandes negócios, geralmente ocultos na informalidade, e a sub-taxação dos que possuem uma grande capacidade contributiva.

Quanto ao aproveitamento da capacidade contributiva pela cobrança dos tributos de competência dos estados e do Distrito Federal, praticamente não há o que reparar, já que o principal imposto desta esfera da administração recai sobre o consumo de bens e serviços e atinge a toda população, sem distinção de classe, de renda, de sexo ou de idade. Os outros dois impostos de competência estadual, o IPVA cobrado adequadamente e as transmissões causa mortis e doações, uma tributação arcaica, taxada segundo a tradição dos tempos coloniais, deverão desaparecer com a reforma proposta, dando lugar a um novo tipo de tributação – que considera todos os tipos de transmissão da propriedade imobiliária sujeitos às mesmas regras de cobrança, quer seja nas transmissões por compra-e-venda, quer seja nas transmissões por herança ou doações de qualquer natureza –, que permanecerá na competência estadual.

Nas tabelas reproduzidas a seguir, vamos informar como e quanto cada esfera da administração pública arrecada tributos de suas respectivas competências, bem como o montante da carga tributária, segundo dados divulgados pelo site do Banco Central, do ano de 2001, ano em que foram arrecadados de impostos, contribuições e taxas diversas R$ 406,8 bilhões, equivalentes a 34,36 % do PIB, estimado pelo BC para o mesmo ano, em 1 trilhão, 184 bilhões de reais. Desse total, os municípios arrecadaram, de receitas próprias, 4,5 % da carga tributária, equivalentes a 1,5 % do PIB; os estados e o Distrito Federal arrecadaram, de impostos de competência estadual, 26,8 % da carga tributária, equivalentes a 9,2 % do PIB; e a União arrecadou 68,7 % da carga tributária, equivalentes a 23,6 % do PIB.

Distribuição das receitas geradas pelo atual sistema tributário:

Arrecadação dos municípios (2001)
Receitas próprias no ano
Tributo Milhões R$ % sem PIB
Imposto sobre serviços - ISS 6.785 0,57
Imposto P.T. Urbano - IPTU 5.366 0,45
Imposto s/ trans Bens - ITBI 980 0,08
Taxas municipais - taxas 3.425 0,29
Contr. Previdência Municipal 1.252 0,11
Outras receitas (diversas) 432 0,04
Total de Receitas Próprias 18.240 1,54
Repasses da União 34.477 2,91
Cota Parte do ICMS 23.566 1,99
Total de Receitas do Município 76.283 6,44
Arrecadação dos estados e do Distrito Federal - 2001
Receitas próprias no ano
Tributo Milhões R$ % sem PIB
Imp. s/ circ. mer. e serv. - ICMS 94.267 7,96
Imp. s/ prop. veic. aut. - IPVA 6.286 0,53
Imp. s/ trans. Cau E doa - ITCD 339 0,03
Taxas estaduais 1.659 0,14
Contr. Prev. dos Servidores 6.111 0,52
Outras receitas (diversas) 374 0,03
Total de Receitas Próprias 109.036 9,2
Repasses da União 29.283 2,47
Total de Receitas do Município 138.319 11,68
Arrecadação da União - 2001
Tributo Milhões R$ % sem PIB
Fonte: site Banco Central
Imposto sobre a renda - IR 63.803 5,81
Imp. Prod. Ind. - IPI 19.316 1,65
Imp. sobre Com. Ext. - II e IE 9.103 0,77
Imp. sobre op. finan. - IOF 3.559 0,30
Imp. Terr. Rural - ITR 190 0,02
Taxas federais 342 0,03
Contr. Previdenciária 61.059 5,16
Contr. Seg. Social 45.435 3,84
Contr. para FGTS 21.047 1,78
Contr. s/ mov. finan. - CPMF 17.157 1,45
Contr. fundo PIS/PASEP 11.147 0,94
Contr. s/ Luc. Liq. - CSLL 8.984 0,76
Contr. Prev. Serv. Federais 3.813 0,32
Contr. Sistemas 3.235 0,27
Contr. Sal. Educação 3.123 0,26
Contr. sociais e outras 2.058 0,17
Contr. marinha mercante 684 0,06
Contr. Fundaf 292 0,02
Demais contribuições 198 0,02
Total de Receitas do Município 279.572 23,60

É notório o emaranhado de tributos e contribuições, comprometendo a racionalidade do sistema. É clara, também, a concentração da arrecadação em poucos impostos.