3.1 Apostasia, a Heresia e o Tribunal
como Negação da Liberdade

A apostasia consiste, essencialmente, numa tentativa de reabilitação de cultos considerados pagãos, porque não cristãos. Considerada um crime, foi imputada a Bruno pelo Santo Ofício.

A expressão “reabilitar um culto pagão” significa, em última análise, admitir que, após o Cristianismo, outras crenças não mais seriam aceitas, ainda que elas fossem anteriores à cristã. De outra forma, pode significar “buscar um novo sentido”.

Que cultos pagãos Giordano Bruno tentou “reabilitar” ou dar-lhes um novo sentido? Que novo significado foi estabelecido para esses cultos?

YATES (1964), confirma a forte ligação do Filósofo com o hermetismo – vulgarmente identificado como magia –, de onde pode ser justificada a imputação do crime de apostasia.

Em A Causa, o Princípio e o Uno, nos deparamos com várias citações de Bruno acerca de Orfeu, Pitágoras, Platão, Empédocles e Plotino e suas concepções sobre a Inteligência Divina (Deus), conforme discutido neste trabalho.

A primeira indicação dada por Bruno se refere ao Platonismo, que identifica o Entendimento Universal (Inteligência Divina) como o forjador do mundo, ou aquele que tudo produz. Os cabalistas o denominam de semeador; para o Orfismo, é o olho do mundo, ou aquele que tudo vê (o interior e o exterior). Para Empédocles, é o princípio da diferenciação, por causa da geração e corrupção das coisas. Por fim, cita Plotino, para quem o entendimento é pai e genitor.

Todos esses Atributos, longe de negarem a concepção cristã, nela se encontram. Para os cristãos, Deus é o Criador do Mundo, é d’Ele que tudo provém e para onde tudo converge. Onde pois o crime de apostasia? Considerando essa interpretação, como justificar o poder exercido pelo catolicismo e pretendido pelas igrejas reformadas?

Os inquisidores encontravam-se diante de duas dificuldades: admitir que a Verdade é una, podendo se expressar de inúmeras formas, através do tempo e do espaço; e que o Cristianismo não detinha a verdade absoluta, mas apenas reafirmava as interpretações anteriormente intuídas e percebidas.(98) A única forma de evitar esse desfecho seria acusá-lo de apostasia.

Consideraremos, agora, o crime de heresia imputado a Giordano Bruno. Concebemos como herege aquele que se desvia das orientações eclesiais. Essa idéia, por demais reproduzida e não discutida, passou a ocupar “um lugar” no inconsciente dos fiéis católicos, sendo aceita de forma tácita.

Mas, para a Igreja, o que é heresia?

Consultando o Directorium Inquisitorium (99), vemos que o herege é aquele que escolhe outro caminho que não o indicado pela Igreja; escolhe outra forma de expressar a sua crença. É aquele que reflete, pois escolhe. Torna-se o portador de uma visão diferente daquela que lhe foi imposta pelas instituições representativas do poder religioso (igrejas), filosófico (academias) ou politico (Estado).

O “herege” é livre para fazer a sua escolha, já que ela é fruto de uma reflexão seguida de uma ação. Há uma coerência no pensamento considerado herético, pois que é fruto de uma formulação, que se traduz no agir. Para ele, a liberdade de pensamento e de expressão são condições fundamentais na escolha. Nesse contexto, podemos concluir que o herege vivencia liberdade.

O que reafirma o Directorium Inquisitorium?

No Capítulo I – Jurisdição do Inquisidor” – é indicada a “noção de heresia”. Vem do verbo “eleger” (eligo); equivale a elesis. “Heresia” viria então, de “eleição…”

Mais adiante:

“… o herético, ficando entre uma verdadeira e uma falsa doutrina nega a verdadeira e “escolhe” como verdadeira uma doutrina falsa e perversa. Portanto, é evidente que o herético ‘elege’. ” (100)

Considera ainda:

“Na acepção primitiva, o conceito de heresia não tinha nada de desonroso: “heréticos” eram simplesmente todos os que pertenciam a uma escola filosófica. Mas, hoje, esta palavra é condenável e indigna porque designa todos aqueles que acreditam ou ensinam coisas contrárias à fé de Cristo e de sua Igreja.” (101)

É lógica, e baseia-se nas indicações do Manual, a conclusão de que o herege expressa a liberdade em sua forma de pensar e agir. Uma forma de invalidar esse raciocínio é a afirmação de que a escolha do herege é sempre falsa. E por ser falsa deve ser combatida. Ele nunca escolhe a Verdade; se assim o fizesse não se colocaria contra a orientação da Igreja, que é a representante do Divino na Terra, ou como afirmam os autores do manual, “pertence a Cristo”. Tomar uma posição contrária à que orienta a Igreja implica uma atitude anticristã. Essa conclusão é fundamental para que o conceito de heresia defendido pelos inquisidores tenha uma base lógica. Caso contrário, afirmar-se-ia que o Cristianismo é contrário à liberdade, o que seria um absurdo!

Ao se reportarem à “acepção primeira” do conceito de heresia, os inquisidores referem-se aos gregos, que não a consideravam “desonrosa”. Essa passagem é fundamental para que percebamos o encadeamento lógico do pensamento inquisitorial.

Não se pode negar a História, sob pena de inviabilizar o fundamento legal que se pretendia dar à acusação de heresia, e muito menos negar que os gregos tinham a liberdade como princípio – ainda que somente para os cidadãos. Nem aos “seus” a Igreja reservava esse direito.

Esse foi o caminho traçado pela Igreja Católica e mais adiante pelas igrejas reformadas. A Verdade é própria da Igreja, não cabendo, portanto, a nenhum fiel lançar-lhe alguma dúvida ou questionamento. A Igreja detém a verdade, que lhe foi “conferida pelo Criador”. Ela (a Verdade) não pode ser procurada – como faziam Bruno e outros hereges. Ela deve ser aceita a partir da interpretação católica. A dúvida conduz à heresia; por isso não deve existir. Caso ela surja, deve ser combatida juntamente com o seu portador – o herege.

Na Introdução do Directorium Inquisitorium, Leonardo Boff anota:

“… nessa visão, o portador da verdade é intolerante. Deve ser intolerante e não tem outra opção. Caso contrário a verdade não é absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser tolerantes, consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros caminhos espirituais.” (102)

Relembrando a postura da Igreja Católica no Século XVI, percebemos que não há lugar para a tolerância. Os fiéis seguidores da Igreja, e ela mesma, não podem fugir da intolerância consigo e com os outros.

Em relação a si próprio, o fiel não pode jamais ser portador da dúvida; em relação ao outro, deve denunciar à Inquisição. Aquele que mantém a dúvida e busca dirimi-la através de outras explicações que não a única admitida pela ortodoxia, já incorreu no crime de heresia.

Resta somente condená-lo; afastá-lo da comunidade. Nessa “guerra” contra a dúvida e a heterodoxia – que a Igreja passou a identificar com o mal – todos os meios foram utilizados.

O primeiro ato da Igreja Católica foi o aniquilamento da liberdade. Essa condição é fundamental para que ela continue a existir como instituição ligada ao poder temporal. A liberdade torna a Igreja desnecessária. Senão vejamos:

  1. Se a liberdade encontrar terreno fértil, outros credos e/ou interpretações religiosas seriam não só considerados dignos de consideração, mas também buscados pelos fiéis.
  2. Novas interpretações surgiriam, independentemente da orientação oficial.
  3. Novas fontes seriam consultadas, independentemente de serem ou não cristãs.
  4. Seriam desnecessárias a imagem do “representante” do Criador na Terra, bem como a hierarquia eclesial.
  5. Com a liberdade, a explicação dogmática cairia por terra e não haveria “desvios”. Sem a liberdade, a Igreja proclama a sua necessidade junto aos fiéis. E as outras “verdades”? São todas fragmentadas e não correspondem à “verdade total”, que é propriedade da Igreja. Por isso fora dela não há salvação. Utilizando a lógica da infalibilidade e a prática da intolerância, a Igreja demonstra ser necessária. (103)

Partindo desse discurso, o inquisidor torna-se necessário e tem como objetivo “defender” a Igreja e a fé cristã, podendo, desta forma, investigar, interrogar, convocar, prender, torturar, sentenciar e conduzir o herege à morte.

Considerando que o primeiro passo é negar a liberdade, o que dizer da origem do Cristianismo, que decorre justamente dela?

O Cristianismo, em sua origem, foi a religião da liberdade; a religião dos que não tinham voz: pescadores, samaritanos, prostitutas, ladrões e que desde a atuação de Jesus, O Cristo, enfrentou a intolerância do Judaísmo.

Consideramos necessário ampliar a discussão acerca da liberdade e da religião, que deverá abranger não só o Cristianismo mas todo e qualquer pensamento religioso que vise a alargar a visão do ser humano acerca do Criador, do Mundo e do Universo, e tenha como fundamento libertá-lo do dogmatismo, da intolerância e do autoritarismo.

Dessa forma, inúmeros credos religiosos presentes na história da humanidade podem ser considerados religiões libertadoras, desde que sejam compreendidas à luz da intuição e não pela razão instrumental. (104)

É esta a grande contradição dos Tribunais da Inquisição: negar a liberdade. Como isso seria possível, sem negar o Cristianismo originário?

Jesus, O Cristo, foi perseguido, interrogado, preso, torturado e assassinado porque a liberdade foi banida do Judaísmo, através da ação autoritária dos escribas, que se consideravam detentores da Verdade Divina. Séculos mais tarde, a Igreja Católica institui os Tribunais da Inquisição, que trilha os mesmo caminhos da moral farisaica, sufocando toda e qualquer atuação que vise a retomar a Verdadeira Religião, baseada na Misericórdia, na Tolerância e na Justiça.

Giordano Bruno em A Causa, o Princípio e o Uno adverte: “Ponderai, ponderai em vosso íntimo e apelai para a inteligência para que vejais que vosso rigor é somente expressão de mania e furor frenéticos. Quem é mais insensato e tolo senão o que não vê a luz?” (105)

A formação dos Tribunais do Santo Ofício que, segundo Leonardo Boff (106), seguem “uma lógica férrea e irretorquível”, revela também que as religiões institucionalizadas, mais precisamente a Igreja Católica, não conseguiram ir além da lógica farisaica, esquecendo-se da advertência: “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus”. Na prática, essa lógica se expressa no total desprezo pelo outro, na arrogância e na legitimação do princípio de autoridade.

Os Tribunais da Inquisição tornaram impossível o florescimento da liberdade no interior da religião católica. Os que foram condenados pelo crime de heresia, buscavam desesperada e heroicamente, reafirmar a liberdade, travando um embate histórico/imanente – porque localizado no tempo e no espaço – metafísico/transcendente, por questionar a ortodoxia religiosa e seus representantes.

E a liberdade conseguiu sobreviver aos tribunais e às fogueiras? Como exterminá-la, se ela é a “essência do espírito”? (107) Como atingi-la, se ela é imaterial? Novamente em discussão a imanência e a transcendência. Pode-se aniqüilar o herege, mas não a razão primeira de sua existência, a liberdade. Mas como impedir que ela se espalhe? Restou, aos tribunais da Inquisição, a utilização da violência e do terror, a fim de que o “exemplo” não fosse seguido; resulta daí a severidade da repressão.

Segundo Leonardo Boff, “… a heresia é tida como crime político de lesa-majestade”. (108) O herege é, portanto, um condenado político, devendo ser cassado e perseguido não só pela Igreja, mas também pelas autoridades e fiéis em geral. Estimula-se a delação ainda que ela contrarie o princípio fundamental do Cristianismo: o amor e a solidariedade; ela se torna um instrumento da obediência cega à hierarquia eclesial.

Movidos pela fé cega e pelo medo, os “fiéis” abrem mão da liberdade, própria do espírito humano. O herege, ao contrário, traz em si a consciência de que a liberdade é inalienável e que é um valor do qual não se pode abrir mão, sem deixar de lado a dignidade. Hegel considera que “O Espírito, (…) é aquilo que tem o seu centro em si mesmo. Ele não tem unidade fora de si, mas a encontrou: está em si e consigo. A matéria tem substância fora de si, o Espírito é o ser-em-si-mesmo (a existência autocontida). Mas, a liberdade é precisamente isto. (…) Eu sou livre quando estou comigo. Essa existência autocontida do Espírito é a consciência própria, a consciência de si.”(109)

Claro está que Hegel não se referia aos movimentos heréticos, mas ao desenvolvimento da História Universal. O nosso propósito é identificar a idéia de liberdade contida nas heresias. O que nos conduziu até Hegel foi o fato de considerar que, através da Cristandade, a humanidade tomou conhecimento de que a liberdade é a essência da natureza humana.

Como foi possível, em nome da Religião do Amor e da Liberdade, a instituição da inquisição? Este comportamento tem como expressão a violência física e jurídica contra a pessoa humana e contra os fundamentos do Cristianismo. Para Leonardo Boff, a violência da Igreja Católica se expressa na forma da distribuição do poder sagrado, apenas para um pequeno grupo; a grande maioria é excluída. (110)

Nesse processo de exclusão, há um momento histórico importante: a transformação do cristianismo em religião oficial do Império Romano levou à sua institucionalização e à distinção entre os leigos e o clero, que antes inexistia, visto que os cristãos vivam em comunidades igualitárias e fraternas, com a total ausência de uma hierarquia eclesial. Em tais comunidades, predominavam características pessoais e não institucionais, já que a “autoridade” era moral e não jurídica.

A partir da institucionalização do Cristianismo, surge o clero, que assume as diretrizes da fé e impõe normas e ritos. Nesse processo, se dá a articulação entre o poder religioso e o poder político. A fim de que essa “aliança” se concretize, torna-se necessário impor limites aos “fiéis” e silenciar os “infiéis”. A relação é necessariamente de poder: há os que podem pensar, falar e decidir e há os que devem apenas aceitar as idéias do clero como se viessem do Criador. O poder dos clérigos faz-se divino; desobedecê-lo é desobedecer ao Ser Supremo. Desta forma, justifica-se a violência e a intolerância.

A luta pela liberdade revela o alcance social e político da condenação de Giordano Bruno: como membro da Igreja e como seu fiel seguidor, ele deveria ter se submetido aos dogmas católicos; jamais questionar as guerras religiosas e a imposição hierárquica. Deveria sobretudo admitir que a Verdade se encontra na Igreja e que ela age de acordo com a Vontade Divina.

Por tal submissão, Bruno deveria abrir mão de um direito mais que filosófico, porque humano: a busca da Verdade. Por tal submissão, ele deveria negar a fé que depositava no gênero humano.

Onde estaria, pois, a Liberdade?

Na verdade, em Giordano Bruno, não nos deparamos com um conceito formal de liberdade. Consideramos, entretanto, que toda a sua vida reflete a busca da Verdade, sem a qual a liberdade é impraticável.

Deve-se buscar a veracidade desta ou daquela idéia na razão e na natureza; na mente e no coração, ou seja, na ciência e na adequação desses preceitos à Verdade Espiritual, que se expressa no mundo físico (é o que ele denomina “ouvir a voz da natureza”).