Lógica Adolescente

Bruno já estava meio cansado de ouvir o pai repetir que as coisas tinham mudado muito nos últimos 15 anos. Como ele tinha acabado de fazer 14, então havia contribuído a vida inteira para essa mudança. Era, pois, um revolucionário vitalício e compulsório. A última vez fora ontem, na hora do jantar, durante o noticiário da TV, convidado de todos os jantares já há décadas, segundo soube. Mal havia começado o segundo bloco e o pai se virou para ele, para sua irmã mais nova e sua mãe e disse num tom professoral, como se fosse pela primeira vez: “As coisas mudaram muito nos últimos… 15 anos, sim, mudaram muito! Não é, querida?” “Sim, claro”, concordou a mãe, como sempre.

Por alguma razão, o bordão do pai ficou martelando na cabeça de Bruno naquela noite, e ele não conseguia conciliar o sono. Sim, as coisas tinham mudado, pelo menos nos últimos dez anos, período em que conseguia rememorar com clareza as ocorrências mais importantes de sua vida. O que havia sido arquivado antes dessa época era sempre algo meio difuso, como que envolto numa névoa.

As coisas tinham mudado, sim, e como! Seu pai, por exemplo. Quando era pequeno, ele era todo carinho e atenção, trazia brinquedos, aquele doce vermelho, levava no parque. Agora, só fazia pegar no pé. “Geografia está ruim este mês, nada de Internet durante a semana!” “Olha só o seu cabelo!” Sua mãe, antes tão amorosa, também não havia escapado da transformação: “Já arrumou o quarto?” “Fez a lição de hoje”? “O quê, piercing? Nem pensar!” Com sua irmã o processo não tinha sido menos traumático. Antes, estavam sempre juntos, brincando e brigando o tempo todo. Agora ela ficava pendurada naquele telefone e esquecia do mundo. Uma chata.

É verdade que seus interesses também haviam se modificado, não era mais criança. Mas que o mundo à sua volta tinha mudado muito mais nos últimos tempos, ah, isso tinha! E para pior. Notou-o com clareza quando passou a ser considerado oficialmente um adolescente, ou “aborrecente” como os adultos gostavam de dizer entre si. Mas, coisa curiosa, continuavam chamando-o de “Bruninho”. Bruninho, o aborrecente.

Mas aborrecente tornara-se o mundo, não ele. O mundo é que tinha ficado muito mais chato, sem graça. Quando criança, achava que o céu devia ser um lugar cheio de brinquedos. Agora, tinha certeza que o Paraíso era uma planície sem escola, sem professores, sem pais, sem irmãs e sem colegas chatos. Um lugar onde se podia comer hambúrguer e batatas fritas quando se bem entendesse e chocolates que não davam espinhas.

“Preferia mil vezes o mundo de dez anos atrás”, disse Bruno para si mesmo, agora já com sono. “Um dia, quando escrever minhas memórias, vou lembrar de dizer que a adolescência é a pior fase da vida.” Poucos minutos depois dormia como uma criança.

No dia seguinte, depois da escola, lá está o Bruno em luta com aquele chatíssimo trabalho de História, quando o telefone toca. Atende a mãe.

Bruninho, é pra você.

Quem?

Uma menina, disse que é amiga.

Deve ser a mala da Paula, não faz a parte dela e ainda fica…

Para com isso, menino. Atende logo! O que sua colega vai pensar? Que coisa!

Alô.

Bruno?

Eu. Quem é?

É a Laurinha.

Laurinha? Oi, que surpresa! Resposta saída de dentro de um sorriso escancarado.

Sabe que que é? Hoje tem a festa do Felipe, né? Queria saber se você quer ir comigo.

Ah, sim, a festa… não, quer dizer, sim, claro que quero… Vou falar com meus pais e…

Minha mãe já disse que leva a gente. Passamos aí às oito. Tchau!

Tchau, Lauriiiiiinha… Sorriso cinzelado no rosto de Bruno.

Bem, até que a vida não era assim totalmente sem graça, afinal. Tinha lá suas compensações, suas exceções. A Laurinha, por exemplo, era linda. Uma miragem de olhos azuis, um oásis de encantamento numa vida arenosa, árida, deserta de emoções.

Bruninho!

Diga, mamãezoca querida.

Já deu um jeito no tsunami do seu quarto?

Não, mas é pra já! E lá foi o Bruno, com aquele sorriso fixo de manequim, deixar o quarto brilhando, ao som de um pop rock assobiado. A mãe nem ligou, o filho era de lua mesmo.

Enquanto arrumava ia pensando na vida. “Laurinha… Aquele rabo de cavalo loiríssimo…” Sua mãe não parecia tão mal-humorada hoje. Na verdade, ela até tinha uma certa razão de reclamar da bagunça no quarto. “Vou lembrar de dizer algumas coisas boas sobre essa fase quando tiver escrevendo minhas memórias. Puxa, a Laurinha… Nunca deu bola pra ninguém. O pessoal vai ficar verde.”

Em relação à irmã, precisava ser mais condescendente, afinal só agora ela tinha deixado de brincar de boneca. Estava descobrindo um mundo novo, de paqueras e amigas namoradeiras. A conta do telefone era um mal menor, papai ia acabar entendendo. “Como a Laurinha vai estar vestida? De azul, para combinar com os olhos?…”

Aliás, seu pai também precisava de mais atenção da sua parte, já havia percebido. É que nessa idade os adultos passam por transformações profundas em seus corpos, e nem sempre sabem lidar bem com isso. As rugas, os cabelos brancos, os níveis de hormônios que caem… essas coisas. Sim, iria procurar conversar mais com seu pai, ser mais compreensivo com ele. Diria que um dia também teria a idade dele, que podia imaginar como era, mas que ele podia se abrir sempre, pois afinal era seu filho e só queria o seu bem. Idade difícil essa do seu pai, adultecência… “Acho que vou levar um presente pra Laurinha. Uma coisinha qualquer, um cartão, talvez com uma poesia. Não, coisa de velho… Acho que um CD seria bom. É isso! Do que será que ela gosta?”

Bruninho!

Diga, minha mãe predileta.

Já arrumou o quarto?

Terminando.

Hora do banho.

Sim, dona generala. Vou limpar bem atrás da orelha hoje, só pra senhora conferir! Sorriso petrificado no rosto.

A mãe da Maria Laura ligou. Eles têm um compromisso em família. Parece que é aniversário de alguém e elas não vêm mais. Pediu desculpas. Já fez a lição de hoje?

Silêncio.

Fez ou não fez?

Não!

A cueca amarrotada escorregou pelas mãos de Bruno, retornando candidamente para o seu lugar de direito, aos pés da cama. A meia suja ia ficar ali mesmo, ao lado do computador. Saiu marchando do quarto e deixou a casa com a clássica batida adolescente de porta. Precisava de ar puro. Tudo naquela casa o sufocava. Ninguém o entendia, a própria vida só vivia pegando no seu pé. O mundo tinha mudado muito nos últimos anos, e para pior, justamente na sua juventude. Iria se lembrar disso quando fosse escrever suas memórias.

Roberto C. P Junior

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